OUVIR, ESCUTAR E FALAR
Há uns meses tive a oportunidade de ler uma profunda crónica, aparentemente bem-humorada, de Marine Rodrigues, que não conheço, nem sei quem é. Percebi que é uma doente sobrevivente de linfoma, jovem de 27 anos. Li que tem desenvolvido um projeto de coping em que pretende associar o bom humor, elemento indispensável da nossa vida, à luta pessoal contra o cancro. O artigo, publicado no Jornal i, a 7 de setembro deste ano, referia-se a médicos hipocondríacos, constatando que “eles andam aí”. Pois andam. E não são poucos. Há quem diga que muitos médicos são exemplos práticos do chamado comportamento contrafóbico, a escolha de fazer alguma coisa que os aproxime mais do seu medo. Há seguramente muitos oncologistas com medo do cancro. Eu sou razoavelmente hipocondríaco. E não tenho só medo do cancro. Incomoda-me a ideia de sofrer e, acima de tudo, da perda de liberdade associada à doença. Há coisas que temo muito mais do que um cancro. Da morte, não tenho medo. Faço parte daquele grupo de positivistas que não acredita em outras vidas para lá daquela que vivemos, aqui e agora, mas aceito que, mais próximo do fim, talvez me veja forçado a ter a esperança de um qualquer paraíso póstumo. Tenho medo do tempo que me separa da morte e de como ele pode ser vivenciado, não de morrer. De morrer terei pena. Mas as nossas convicções pessoais não são o cerne do tema. Afirmar-se “sobrevivente de linfoma” é muito mais do que ter tido um linfoma e ainda estar viva. É uma experiência riquíssima, violenta, pacificadora e um tributo a quem sobrevive e ao que os fez ser sobreviventes. O que está em causa, na crónica da Marine, é a capacidade de ouvir, escutar e falar com um doente, ultrapassando crenças prévias, sem medos, procurando entender e criando empatia. Ouvir e responder, numa linguajem cheia de significado e que faça parte do processo terapêutico, dizendo palavras mais fortes do que qualquer medicamento ou cirurgia. Criando confiança e sentido de proteção. Com tempo. Tempos em que a conversa é feita de silêncios, de esperas, de gestos e olhares, como em tudo que envolve gente que tem muito para dizer e tem de o dizer ali, àquela pessoa, como se não houvesse mais ninguém que os pudesse compreender. É nisso que se baseia a relação médico-doente e é de falhas nessa comunicação que a Marine nos escreveu. Há um fio que se cria, que tem uma base animal, não exclusivamente humana, verbal e não-verbal, em que as nossas experiências passadas, o nosso conhecimento, os nossos sentimentos, são colocados ao serviço de quem precisa de nós, dos nossos doentes. É só inato? Não é. Uns terão mais jeito do que outros. Mas aprende-se, treina-se, tem arte e ciência. Tem técnica. E precisa de ser ensinada nas faculdades de Medicina e de todas as outras profissões da saúde. O poder curativo da palavra e do toque não é substituível, e nada é igual à relação interpessoal que a medicina cria. É, ninguém tenha dúvida, um património intangível, demasiado valioso para ser mensurável, que nunca se poderá perder.