SEM TETO E SEM ESPERANÇA
Para aqueles que não têm teto sob o qual possam dormir, os denominados sem-abrigo, à falta de casa associa-se a falta de esperança. É uma espiral de perda de que se torna quase impossível sair. A recente iniciativa do Senhor Presidente da República, elegendo os sem-abrigo como uma prioridade nacional, teve várias virtudes. Por um lado, ajudou a restaurar a esperança de pessoas de quem normalmente nos esquecemos. Tornou-os menos transparentes. Cada vez que se fala deles, lembramo-nos de que existem e de que é preciso fazer alguma coisa, muita coisa, por eles. É evidente que a fasquia exigida, de eliminar completamente este flagelo, é uma utopia. Mas é uma utopia louvável. Coloca pressão sobre quem tem de contribuir para a solução do drama dos sem casa e, não menos importante, impõe um prazo e uma meta. Digo que a eliminação total, a erradicação dos sem-abrigo, ainda é uma utopia porque a génese etiológica do fenómeno é multifatorial e complexa. Também aqui há mérito do nosso Presidente. Ao alertar para os sem-abrigo, levanta toda a variedade de questões que estão ligadas à saúde e ilustra a problemática da saúde em todas as políticas. Os sem-abrigo são, em primeiro lugar, uma questão de saúde. Por via disso é que são um problema social. Social, porque são um espinho em toda a sociedade, mas a base e as consequências da vida de um sem-abrigo é a perda de saúde. Sem abrigo não há um estado de completo bem-estar, físico, mental e social, não há saúde. E, ainda mais flagrantemente, uma parte muito significativa das pessoas que “escolhem” viver na rua são pessoas com problemas da esfera da saúde mental que determinam, agravam ou condicionam a vida na rua. O combate à falta de abrigo que assola pessoas que estão aí, ao virar das esquinas, enquanto leem estas linhas, não pode ser um número de angariação de popularidade, nem uma cosmética de autarcas e governantes em anos de eleição. Tem de ser uma luta profunda, nos confins da génese do problema que não se restringe à pobreza, à falta de escolaridade ou de qualificações, ao álcool, às drogas ou às psicoses. Os sem-abrigo resultam de tudo isto e da nossa incapacidade de responder com o que eles precisam. E há os recidivantes e os incorrigíveis, os que voltam à rua quando se lhes dá abrigo. Pois há, e esses, por serem os mais difíceis, exigem ainda maior esforço. E enquanto na rua, deambulando sem sentido e sem fim, há que procurá-los, contá-los e assisti-los. Temos quem o vá fazendo e quase sempre sem outro apoio que não seja o voluntarismo de quem quer ajudar, todas as noites e sem mais nada para receber que não seja um sorriso, um obrigado ou a indiferença de quem já não sabe ser outra coisa do que diferente. Está na altura de fazer a diferença. Responder ao apelo de Belém e trabalhar numa estratégia conjunta, necessariamente pilotada pelos organismos da saúde, para a mitigação progressiva das causas e dos indivíduos que sobrevivem sem abrigo. Por essa via, com persistência, paciência e vontade, talvez se consiga, um dia, a erradicação de mais esta doença que se pode prevenir e tratar. Só que nunca poderá ser com o “faz de conta”.