FERNANDO LEAL DA COSTA

pag 12_JCF_0098O TEMPO

O que nos falta e o que passou. O que temos. Contamos o tempo como o que foi. São as perdas que nos fazem sentir o tempo. As pessoas que se foram, as casas onde vivemos, as festas onde estivemos, as tristezas que nos assolaram, os amigos que nos magoaram. Foi em 2016 que me senti velho. Pode parecer estranho. Já perdi avós, todos os quatro. O meu pai partiu quando eu tinha 26 anos. Antes disso já tinha vivido a morte de amigos. No fundo, perdas suficientes para poder dizer que o tempo tinha passado. Mas foi em 2016 que me senti velho. Foi com a morte do Bowie que senti o peso da juventude desaparecida. Tinha ouvido o “Lazarus” na véspera e, como sempre, invadiu-me a clareza da voz e a subtileza da melodia. Ele ia para o céu e foi mesmo. É certo que o Zappa já tinha desaparecido. O Hendrix e o Morrison só me fizeram falta anos depois de já terem morrido. Nunca apreciei, por aí além, a Joplin e o Jones foi substituído pelo Taylor, sem que as pedras parassem de rolar. O obituário do Barrett, desaparecido em combate, já tinha sido um alerta. Mas foi o Bowie que me fez entender. Já não sou adolescente, nem jovem. A física não o permite. Pois é. Ainda não me tinha convencido. Os anos somam-se. As células morrem e algumas, as que tentarão ser imortais, acabarão por nos matar. Como ao Bowie. Logo de seguida foi o Príncipe, Nelson de seu nome, que se foi embora. Chuva Púrpura em todo o mundo. “Sign O’ the Times mess with your mind. Hurry before it’s too late.” Lembrei-me, então, que o Wright também já tinha morrido. “The sun is the same in a relative way, but you’re older, shorter of breath and one day closer to death.” Bem me tinham avisado, os da cor-de-rosa. E lá se foram mais uns heróis da minha juventude. O Latimer tratou-se com uma transplantação de medula óssea, o que confirma a utilidade musical da minha profissão. O Bardens, que em tempos andou montado no mesmo camelo, também já se tinha ido. O Hammill sobreviveu a um enfarte. Ainda bem que havia cardiologistas que gostavam de Van Der Graaf. E o Reed? Maldita a hepatite que lhe destruiu o fígado. Nem com transplantação hepática se curou. As portas fecharam-se, finalmente, embora já só estivessem entreabertas. Foi-se o Manzarek. E os baixos? Perderam-se dois dos melhores. O Pastorius tinha sido assassinado. Que coisa sinistra, a morte de um génio às mãos de um tolo. O Lennon que o diga, esteja lá onde estiver. O Harrison, esse foi-se de doença hematológica. Mas dois baixos, em menos de um ano e por doença maligna? Foi demais. O Squire e agora o Wetton. Não há mais peixe, acabou-se a Schindleria Praematurus. Uma vítima da hematologia, mais outra. Nem vai haver mais céu magnificamente sem estrelas. “Ice blue silver sky, fades into grey”. O Rei Vermelho ficou com a corte mais pobre. Faz agora um ano que comecei a escrever para a FRONTLINE. Tem sido bom. Para os poucos que se deram ao trabalho de me ler, espero que também. A FRONTLINE faz anos. Espero que conte muitos. Muitos mais do que aqueles que ainda poderei vir a ter para aqui escrever. O Bowie, foi ele, depois de tantos anos a ouvi-lo, que me fez perceber. Sou um filho do Progressivo, do Art, do Pop, do Glam, sei lá mais do que já chamaram à música que marcou a história da minha geração. Os nomes não interessam. Agora há hip hop e rap. Não faz diferença. A arte é eterna, porque quem a faz não o pode ser. E eu, nem artista sou. Sou hematologista. “I’ve got scars that can’t be seen. I’ve got drama, can’t be stolen.” Não temos todos? É isso, o tempo.