OS “TRUMPS”
Houve quem tenha ficado incrédulo com os resultados eleitorais nos EUA. Venceu o discurso racista, xenófobo, misógino, quase misantropo, arrogante e milionário (o que é insulto para alguns políticos nacionais). Logo surgiu quem explicasse o fenómeno que não tinha sido capaz de prever e, num exercício de calmante wishful thinking, viesse explicar que, afinal, o Trump não é o que parece ser. Era retórica, agora vai ser a sério e tudo correrá bem, menos mal, assim-assim. No meio da “atrumpalhação”, também houve quem, sem perder a compostura, tenha vindo explicar as razões profundas dos votos de um eleitorado desconhecido dos analistas. Poucos anteciparam o impacto da assimetria de informação no momento da escolha eleitoral. Nos EUA, 60% dos homicídios são cometidos com armas de fogo, logo, convém andar armado. Para os descendentes da conquista do Oeste o direito ao porte de arma é sagrado. Há criacionistas para quem a Bíblia é incontestável e, em consonância cognitiva, não aceitam a evolução. São milhões aqueles a quem não explicaram que o melhoramento genético da humanidade depende do aumento dos cruzamentos interétnicos. Recusam mesmo que possamos ser todos descendentes de um antropoide surgido em África, algures no Rift. Onde é que isso fica? O Donald ganhou porque não se perdeu em explicações elaboradas para quem as não queria ouvir. Mandaram-no falar para pessoas que sentiam o seu território ameaçado. O Trump foi um etólogo. Prometeu mais empregos num país onde, apesar do quase pleno emprego, os sem formação só têm acesso ao que Barbara Ehrenreich descreveu no seu imperdível Nickel and Dimed. Aquecimento global, num país com estados glaciais? Carros elétricos? A América vencerá a dependência do petróleo (importado) produzindo ainda mais petróleo. Prometeu o fim de um plano de proteção de saúde, que nunca deixaram funcionar, contra o qual estão todos os que se habituaram a ganhar com a doença dos outros. O Obamacare é complexo e insuficiente para substituir as coberturas que a maioria dos empregados tem e receia perder. Apelou ao orgulho nacional num país que é o mais internacional de todos. Felizmente, o Touro Sentado não tinha uma empresa de construção. E se ele tivesse mandado construir um muro a fechar as terras dos Lakota? Acenou com investimento público, na mais “privada” das economias. Apelou à União, na mais individual das sociedades. Paradoxos? Metade dos americanos que votaram não quis saber. E não se imagine que há americanos maus e europeus bons. A América é também uma das Europas que andámos séculos a exportar. Trump é um instrumento. O “sintoma” social está na forma como as pessoas votam, seja lá como for. O “Trumpismo” é a exaltação mais recente da arte de ganhar eleições no miolo da curva de Gauss, a tal que descreve o contínuo da multidão que somos. O mal dos “Trumps” não está na sua fala artificialmente “espontânea”. O pior é o seu completo desprezo pela verdade, as frases que reforçam crenças erradas. Não são contra o “politicamente correto”, como nos querem fazer crer. Os novos “Trumps” têm retórica refinada e só dizem o que se espera que digam. Usam, melhor do que ninguém, o sistema que dizem combater. Mas enquanto Trump é descartável, o sentimento de quem vota não é. No meio de tanta análise, parece claro que a única vacina contra a inevitável demagogia a que a democracia nos conduz, já diziam os gregos, é sabermos que não podemos impor às pessoas aquilo que elas não querem, porque não podem querer, nem exigir que percebam, sem que se lhes explique, a globalidade do mundo e a inevitabilidade da mudança. Tenhamos esperança, eppur si muove.