CARLOS ZORRINHO

NATAL 2020. Este texto, escrito por razões de programação editorial em pleno novembro, não tem a intenção nem o atrevimento de fazer qualquer prognóstico sobre como vai ser o nosso Natal neste ano de profunda incerteza, marcado por uma pandemia brutal que contaminou todas as dimensões da nossa vida em sociedade. Tarefa menos arriscada, embora o afirme por pura intuição, seria arriscar prever o Natal de 2021 ou de 2022. Em plena segunda vaga e com todos os sistemas de resposta sob grande pressão, sabemos hoje que a ideia de que esta catástrofe coletiva seria um evento mobilizador do melhor que há em cada indivíduo e em cada comunidade ou instituição para uma resposta humanista forte e também uma oportunidade de redescoberta e aperfeiçoamento individual, não passou de uma utopia bem-intencionada. Certamente terão existido por esse mundo fora muitos exemplos de grande superação individual e coletiva, que em rede nos ajudaram a lidar com a crise e que vão continuar a ser fundamentais no processo de recuperação e resiliência, mas a grande transformação ou a viragem estrutural que muitos anteviram não aconteceram. Numa perspetiva de análise macro, eu, que sou otimista por natureza e procuro sempre extrair e valorizar o melhor dos comportamentos humanos e das dinâmicas que os originam, tenho a perceção que a pressão pandémica, nas suas múltiplas dimensões, não mexeu com a natureza das coisas. Apenas expôs mais as contradições, os dilemas, as desigualdades e as fragilidades inerentes a cada um de nós e aos nossos modelos sociais, e ao fazê-lo, puxou também pelos medos, pelas reações extremas e desproporcionadas, pelos fatores que mais contribuem para a incompreensão, para a quebra de diálogo e em última análise para a infelicidade das pessoas e dos povos. Escrevo enquanto se contam os últimos votos das mais importantes eleições presidenciais do planeta, quase 72 horas depois de terem fechado as urnas. Só esse facto, seja a vitória conseguida por uma unha azul, como tudo leva a crer, ou por uma unha vermelha, como ainda é remotamente possível, expõe bem a fratura da sociedade americana. Uma fratura tão profunda que nos faz temer o pior para a batalha judicial e eventualmente territorial que se seguirá e que quase tem colocado na penumbra o regresso progressivo e meticuloso do terrorismo radicalizado às ruas, praças e igrejas da velha Europa, e um preocupante retrocesso da democracia transparente e fluida em quase todos os recantos do globo. Espero por isso que, sem a azáfama consumista de outros tempos, o Natal de 2020 seja um tempo para respirar, para olhar com olhos de ver, para diminuir o encandeamento a que a parafernália tecnológica e de conteúdos nos submete, para emergirmos enquanto seres conscientes de si próprios e com um propósito de vida, e para semearmos a seara que a tempestade destruidora se esqueceu de deixar no seu rasto. Para todos, um bom Natal e um ano de 2021 que nunca nos deixe esquecer 2020.  

 

 

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