CARLOS ZORRINHO

ZORRINHOAPAGAMENTO

A sociedade digital dá-nos a ilusão da visibilidade. De facto, desde que possuidores duma mínima literacia digital, todos nós podemos consultar bases de dados, integrar redes sociais e partilhar informação com o mundo que nos rodeia. Mesmo os não literatos estão virtualmente alojados em múltiplas bases de dados e já adquiriram várias “existências”, algumas delas prevalecentes para além da sua própria morte física.   Contudo, essa visibilidade é cada vez mais fátua. No fim do dia, o que prevalece é apenas o global e o local. O que muda o mundo e o que muda o nosso mundo. Tudo o resto escoa pelas sarjetas gigantes do apagamento e com ela vai toda a mediania que tem a ilusão de ser, mas que de facto, por muito que isto custe dizer, não é. Como num grande aquário, também na sociedade digital só os grandes peixes e os peixes muito pequenos podem sobreviver. Os médios alimentam os grandes e os pequenos aproveitam os restos. A especialização faz com que os grandes sejam cada vez maiores e os pequenos cada vez mais pequenos, até que o ecossistema se torna insustentável porque desaparece o motor de tudo. Os peixes médios. A comida dos outros. Esta imagem é potente para explicar a sociedade das desigualdades a que estamos cada vez mais amarrados e a revolução que o esboroar das classes médias tenderá a provocar. Mas não é sobre a revolução que quero escrever hoje. Quero focar-me mais no indivíduo e na sua inserção na sociedade, na comunidade e no mundo. Só nos restam dois palcos que ainda têm luz própria. O que é global e o que é próximo. E restamos nós, se soubermos agir nestas duas dimensões, ou pelo menos numa delas. Há sonhos que se podem tornar reais. Mudar o mundo e mudar a nossa forma de estar no mundo. Tudo o resto, as rotinas e as mecânicas de sobrevivência, a afirmação material, a intermediação dos pequenos e dos grandes poderes, são fenómenos essenciais à vida mas destinados ao apagamento por maior que seja o repositório onde ficam provisoriamente guardados. Experimente o leitor a percorrer os seus arquivos (físicos, mentais, digitais). Veja o que lá está que deixou marcas perenes e que fez a diferença. Os outros podem lá estar porque já não existem. Foram apagados. Não têm link ativo! Mas onde quero eu chegar? A uma pergunta: “Porque é que perdemos tanto tempo a trabalhar para o apagamento?” Sim, eu também trabalho muito para o apagamento. Este texto, por exemplo. Será mais um pirilampo ou um gambuzino que depressa se apagará ou pegará luz a algumas das mentes que o sorverem? Em síntese, caro leitor, está a trabalhar para tornar a humanidade mais feliz? Está a trabalhar para se sentir cada dia mais feliz? Está a fazer as duas coisas? Parabéns. Não está? Não se preocupe. O apagamento resolve.