CARLOS MINEIRO AIRES

ENSAIO SOBRE O “APAGÃO” 

No final da manhã do dia 28 de abril, ocorreu em Portugal, em Espanha e numa franja da França pirenaica, um corte de energia que se estendeu por uma dúzia de horas, que originou um “apagão geral” que nos deixou atarantados. 

A propósito da escuridão, veio-me à memória um livro de José Saramago, o segundo Nobel português, um escritor genial e único, nem sempre bem tratado e até rejeitado por motivos ideológicos e clericais, mesmo por quem nunca o leu ou nunca abriu um livro na vida. É pena, pois não sabem o que perdem. Refiro-me ao Ensaio sobre a Cegueira, mais tarde adaptado para o cinema, no qual um homem, súbita e inexplicavelmente, fica cego quando se encontra de carro no meio do trânsito, cegueira que rapidamente alastrou como uma pandemia, originando um apagão ocular coletivo onde apenas uma mulher vê, embora não o revele. Nesta cegueira coletiva, vêm ao de cima os piores e os melhores sentimentos da raça humana, num quadro em que os personagens não são identificados pelo seu nome, mas pelas suas especificidades. 

Vivenciei o “apagão” certamente da mesma forma que a generalidade dos portugueses. Quando faltou a luz, continuei absorvido no computador e na esperança de que a energia voltasse rapidamente, até que, passado umas horas,quando a bateria ameaçava esgotar, resolvi parar e ver o que se passava à minha volta no centro de Lisboa. Quando assomei à janela foi surpreso que vi uma multidão que caminhava pelos passeios sem qualquer informação disponível e um mar de carros que, sem buzinar e de forma ordeira, procuravam rumar aos seus destinos. 

A internet tinha caído, o sinal das operadoras há muito que havia desaparecido e sem um rádio ao meu dispor, não fazia ideia da dimensão do ocorrido. Foi então que resolvi seguir a multidão. 

Já no carro, depois de ter conseguido entrar no denso e indolente trânsito, pude, através do rádio, saber o que se estava a passar, enquanto observava os “cegos” que, de telemóvel mudo e quedo na mão, procuravam avidamente ver se o acesso à rede já tinha voltado. Sem ele não eram nada, não sabiam o que os rodeava, nem como reagir. 

Tal como no livro, o instinto de sobrevivência levou muitos a correrem para os supermercados, disputando a água disponível, alimentos e papel higiénico, como se este, sem comida, pudesse vir a ter alguma utilidade. 

Mais tarde, já em casa, recorrendo a um “transistor” que milagrosamente ainda funcionava, fui-me inteirando da situação. Desde conspirações, ataques cibernético, cenários de guerra na Europa Central, ouvi um pouco de tudo,antes de a informação passar a ser mais credível, nomeadamente pela boca dos engenheiros. 

Gestão desequilibrada 

Afinal tudo teve origem num problema de gestão desequilibrada da produção e consumo de energia algures em Espanha, provocada por uma súbita e forte quebra na oferta disponível, o que acionou os mecanismos transfronteiriços de proteção, levando a cortes inesperados. 

Para além da rede ibérica, integrada no MIBEL, onde a produção a partir de energias renováveis atinge níveis elevadíssimos difíceis de gerir e compatibilizar, a reposição da situação ou mitigação do sucedido não pôde contar com a colaboração de França, grande produtora a partir de fontes nucleares, porquanto este país tudo tem feito para adiar o reforço das suas ligações à Península Ibérica e, por arrasto, da rede europeia, apesar das promessas dos seus políticos e das envergonhadas pressões de Bruxelas. 

O ocorrido já era esperado e pode repetir-se como muitos especialistas alertaram. Em Portugal, crentes na divina proteção e porque tem custos que os privados não perdoam, apenas acautelámos dois pontos que são insuficientespara acorrer ao mais rápido arranque da rede nacional a partir do zero, na Barragem de Castelo de Bode (hídrica) e na Central da Tapada do Outeiro (cogeração a gás natural), o que atrasou o regresso da energia, mas teve a virtude de no dia seguinte já haver certezas da contratação de mais dois centros produtores a alocar para o efeito, as centrais hídricas de Alqueva e do Baixo Sabor, cuja disponibilidade também não deixará de passar a recair sobre as tarifas, ou seja, nos consumidores. 

As complicações climáticas, e não as alterações, aceleram as agendas políticas e não se acautelam soluções tecnológicas robustas e já existentes para a gestão massiva de energias de carácter intermitente que podem falhar, pois sem vento ou sem sol não produzem. 

Prevenir o futuro 

A ignorância, a tendenciosidade política e a desinformação voltaram a grassar, sendo escassas as vozes entendidas que puderam explicar o que verdadeiramente aconteceu e como se poderá mitigar ou evitar futuramente, sendo que,num mercado alargado e competitivo como é o da energia, hoje não podemos pensar em estar sozinhos, como então ouvi. 

Há males que vêm por bem: não imaginávamos que as operadoras de comunicações colapsassem por ausência de fontes de energia ou redundâncias, que os cidadãos deixassem de poder comunicar ou ter acesso à internet, onde hoje tudo se procura e se encontra, à rádio e à TV, que o simples acesso aos combustíveis ficasse interditado porque as bombas são elétricas, bem como a falta de água e o próprio funcionamento de hospitais, etc. A digitalização, a inteligência artificial e a nossa nova forma de vida, exigem cada vez mais energia. 

Para disfarçar as nossas insuficiências, o ridículo chegou ao ponto de procurarmos resolver situações com jerry cans de combustível para encher os depósitos dos geradores de instalações prioritárias, à comercialização de um “Kit Apagão”para sobrevivência, entre outras hilariantes fantasias. 

Mesmo assim, a resposta dada demonstrou a nossa competência técnica e capacidade interna. 

Agora, fechem os olhos e imaginem se fosse um sismo devastador, pois ainda há quem diga que estamos preparados.Citando Saramago: “já éramos cegos no momento em que cegámos”. 

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