OVOS DE OURO QUE DEFINHAM À SEDE
Por norma as galinhas que põem ovos de ouro têm o seu habitat próximo do mar, necessitando de água em abundância para assegurar a sobrevivência da espécie e os estranhos hábitos dos humanos que as multiplicam, sob pena de os ovos de ouro perderem valor. Está provada a sua letal alergia a massificações urbanísticas e dislates conexos, pois por falta de água perdem valor.
Na orla marítima ibérica multiplicam-se os casos e teima-se em repetir os erros, como os que se registaram no Algarve e na costa de Espanha, e agora nos territórios designados por Comporta, que se estendem de Troia a Melides e até perto de Alcácer do Sal, onde as autarquias não têm a capacidade técnica e a força que seria necessária para acautelar determinadas situações.
Quem estiver mais atento e, quiçá, mais preocupado e informado, apercebe-se da repetição dos erros e da não existência (pelo menos que eu saiba) de um estudo integrado que fundamente a sustentabilidade hídrica da ocupação e do crescimento de investimentos turísticos, mas não só, pelo que não é tida em conta a necessidade de uma efetiva gestão da água para consumo humano, regas de espaços verdes, campos de golfe e atividades agrícolas, algumas com finalidades discutíveis, entre outros.
Dado que os agricultores não abdicam, e muito bem, de uma gota da já escassa água que corre e se perde nos deteriorados canais de rega que se estendem por várias dezenas de quilómetros desde as barragens construídas pelo Estado Novo, hoje meio vazias, até aos arrozais do litoral, a alternativa é o recurso indiscriminado a águas subterrâneas.
A bacia do Tejo/Sado
Pela sua extensão, espessura e produtividade, a bacia do Tejo/Sado é a maior massa de água subterrânea do país, onde a recarga natural dos seus recursos hídricos é basicamente assegurada pela infiltração da água da chuva, cada vez em menor quantidade, e também a partir de cursos de água. Estende-se por uma área de cerca de 8500 km2, desde o Ribatejo (distrito de Santarém) até aos concelhos de Alcácer do Sal e Grândola, estando subjacente às massas de água salgada do mar e do estuário do Sado, o que permite a extração de água doce na estreita península de Tróia, onde num pequeno espaço estão já inúmeros furos que não param de crescer.
Na sua extensa área existem importantes atividade industriais e agrícolas, estas devido à diversidade e riqueza dos solos, bem como significativos polos de ocupação humana. Apesar de ser abundante, o recurso padece de sobre-exploração, captações ilegais e nem sempre executadas nas devidas condições, o que pode colocar em contacto águas subterrâneas superficiais com as mais profundas, o que a deficiente, se não mesmo ausente, fiscalização não permite controlar, estimando-se em milhares os furos executados sem licenciamento.
A par, a deficiente monitorização não permite ter informação fidedigna sobre o rebaixamento dos níveis freáticos devido à exploração descontrolada e ao déficit da recarga natural, e também sobre a degradação da qualidade das águas subterrâneas por ações antropogénicas, ou seja, pela poluição difusa devido a atividades agrícolas e poluição tópica devido a ações localizadas, caso de indústrias, criação de gado, esgotos ilegais, etc.
Risco de contaminação
Questão mais grave, por ser irreversível, é o efetivo risco de contaminação salina que pode facilmente ocorrer na bacia do Tejo/Sado, sobretudo nas áreas próximas dos estuários.
Muito se ouve falar do risco de contaminação dos aquíferos pela construção do novo aeroporto Luís de Camões, em Samora Correia, bastas vezes demonstrando a total ignorância e atrevimento dos mensageiros que desconhecem que numa infraestrutura moderna desta natureza nem uma gota de água que escorra dentro do seu perímetro deixará de ser recolhida, tratada e reutilizada.
A área cautelarmente reservada para a ampliação até quatro pistas (3400 ha), que não pode ser confundida com a área muito menor que será impermeabilizada, é despicienda no contexto da área total do aquífero.
É, pois, o menor dos problemas dentro dos 8500 km2 que o aquífero abrange e corresponde a uma insignificante redução de 0,09% nas infiltrações, motivada pela área impermeabilizada no aeroporto, numa zona onde as extrações de água, designadamente para consumo na agricultura, campos de golfe e no abastecimento às populações, já ameaçam o limite do que seria sustentável.
Desconhecendo-se ainda se as origens de água para o aeroporto serão obtidas através de captações subterrâneas ou se terão origem no sistema da EPAL, não há porém qualquer dúvida de que todas escorrências (águas de chuvas e lavagens) serão recolhidas, tratadas e reutilizadas, o que reduz substancialmente as necessidades de água limpa.
Territórios da Comporta
Mas voltemos aos territórios da agora designada Comporta, onde a dessalinização já surge como panaceia para os erros de planeamento e densa ocupação do território, onde apenas aponto alguns casos.
Com surpresa, foi recentemente reprovada uma plantação abacates que inicialmente previa 722 hectares (ha) e 34 furos de captação de água, tendo sido reduzido para 658 ha e 32 furos, isto é, praticamente para o mesmo, mas ficou a intenção.
Já tinham sido autorizados 500 ha de produção de tangerinas em plena Zona Especial de Conservação da Comporta-Galé, inserida na rede Natura 2000 e a abertura de 26 furos para extração anual de mais de 3 milhões de metros cúbicos de água. Também foi noticiado que o mais recente projeto aprovado na mesma zona (Herdade da Comporta/Alcácer do Sal), designado como um Plano de Intervenção em Espaço Rural, junta cerca de 80 proprietários e prevê o aumento de mais 3 mil camas, abrangendo uma área de mais de 1700 ha em 76 propriedades e, pasme-se, a crer no que foi publicado, propõe que a água seja obtida em furos indiscriminados e os esgotos rejeitados para fossas sépticas individuais, em vez de um sistema de abastecimento público de água e de saneamento básico, o que é um retrocesso preocupante.
É, pois, lamentável que não exista a perceção e o sentido público de que o pretenso desenvolvimento não pode ser feito a qualquer preço e que os potenciais benefícios aportam graves riscos e danos irreversíveis num balanço que nunca importa realizar.