FERROVIA OUTRA DEBILIDADE NACIONAL
O desinvestimento na ferrovia relegou-nos para níveis que nada nos prestigiam, sobretudo quando agitamos bandeiras climáticas da descarbonização e nos orgulhamos de sermos um país de ponta na questão das energias renováveis.
Segundo a Pordata, entre 1974 e 2022 foram desativados perto de mil quilómetros de linhas férreas (cerca de 30%), mas construíram-se mais de 3 mil quilómetros de autoestradas e o número de passageiros nos aeroportos nacionais cresceu 12 vezes. Apostámos na rodovia para o transporte de mercadorias e pessoas, o que aumentou o recurso a automóveis e veículos pesados movidos por derivados de combustíveis fósseis e que geram gases com efeito de estufa potenciadores de alterações climáticas, o que a descarbonização visa mitigar, já que não se vislumbra o to- tal abandono da sua utilização. Entretanto, há que reconhecê-lo, foi retomada uma forte aposta na ferrovia, estando em curso múltiplos investimentos estruturantes, sendo de realçar, entre outras, as obras de ligação a Espanha (troço Évora-Caia) e o lançamento do primeiro troço da linha de alta velocidade (AV) Porto-Lisboa. A par, foi desenvolvido o Plano Ferroviário Nacional (PFN), ainda não formalmente aprovado apesar de incluir as obras em curso e outras opções já tomadas, mas que considero um excelente plano e revela conhecimento da ferrovia em Portugal. A calendarização prevista para agora podermos construir o que deixou de ser feito não é a mais animadora, mas é a possível.
CENTRALIDADE ATLÂNTICA
Entretanto, com a guerra na Ucrânia e com os efeitos que teve na Europa, Portugal passou a ter condições para deixar de ser um país europeu periférico se souber aproveitar a agora reforçada centralidade atlântica. Tal obriga ao aproveitamento da capacidade dos portos de Leixões e de Sines, da sua eficaz ligação ferroviária a Espanha e à Europa. No caso de Sines, acresce o elevado interesse logístico da Base Aérea de Beja que deve ser ligado à interconectividade que as redes transeuropeias garantem. Neste quadro, julgo importante aflorar duas questões que têm sido objeto de discussão pública.
A primeira tem a ver com o abandono do transporte aéreo, já que tem sido anunciada a intenção serem interditos voos em distâncias inferiores a 600 km e há mesmo quem defenda que este limite deve ser alargado. A nossa localização na extremidade ocidental da Europa cria-nos limitações evidentes. Por isso, o nosso objetivo internacional prioritário para qualquer ligação em AV será sempre até Madrid, a partir de onde existem conexões para a Europa, sem descurar o elevado interesse e urgência de uma ligação à Galiza, no pressuposto de que Espanha não tem interesse em construir uma nova via dedicada a Portugal. Isto, a par das distâncias, inviabiliza o recurso preferencial ao transporte ferroviário para ligações a outros países para lá dos Pirenéus, pois a procura não se compadece com viagens morosas.
BITOLA IBÉRICA OU EUROPEIA
A segunda tem a ver com a discussão que tem havido sobre a utilização da bitola ibérica (1668 mm), existente em Portugal e na maior parte da rede espanhola, ou da bitola europeia (1435 mm) afeta à AV em Espanha e na Europa, questão que, a meu ver, no quadro atual, nem sequer poderia constituir uma boa solução para Portugal. Também interessa esclarecer que o transporte de mercadorias não é, por norma, realizado em redes de AV, ao contrário que que se ouve dizer.
A XIX Cimeira Luso-Espanhola, realizada em 7 e 8 de Novembro de 2003, na Figueira da Foz, acordou a definição dos eixos ferroviários de alta velocidade para as interligações com Espanha que, por Resolução do Conselho de Ministros, de 26 de Junho de 2004, foram assumidas como projeto nacional. Em boa verdade, ligações demasiado ambiciosas que deveriam estar concluídas até 2015 (Porto-Vigo, Lisboa-Madrid, Lisboa-Porto, Lisboa-Faro-Huelva, via Évora, e Aveiro-Salamanca, entre outras), sendo que da parte de Espanha foram então garantidos os investimentos necessários para que fosse possível cumprir o que ficou acordado.
Devido à crise financeira de 2011 Portugal adiou indefinidamente os projetos, o que mereceu a mais do que óbvia compreensão de Espanha, dado não serem prioritários, que reagiu com uma diplomática declaração de abrandamento dos desenvolvimentos a que estariam obrigados. Por isto, Espanha não fez qualquer investimento em bitola europeia em direção à fronteira ferroviária portuguesa, mantendo a bitola ibérica na cobertura ferroviária fronteiriça, sem quaisquer constrangimentos de interoperabilidade do material circulante, o que teremos de replicar. Para coexistência das duas bitolas, Espanha também recorre a vias com um “terceiro carril”.
INVESTIMENTOS EM CURSO
Só em dezembro de 2023 foi concluída a eletrificação da linha ferroviária entre Badajoz, Cáceres e Plasencia, agora designada por “LAV Estremadura”, em via única de bitola ibérica, assente em plataforma de via dupla, que será duplicada e convertida para a bitola europeia quando for ligada à LAV Sevilha-Madrid, perto de Toledo. Do lado de Espanha, entre Salamanca e Vilar Formoso, a eletrificação ainda não chegou a Fuentes de Oñoro, e nas restantes fronteiras ainda está tudo por resolver.
É este o alegado “paraíso” da AV e da bitola junto à fronteira portuguesa que tenho ouvido elogiar.
Posto isto, caso tivéssemos optado pela bitola europeia nos investimentos que estão em curso, estaríamos a criar uma “ilha ferroviária” no território nacional por inexistência de qualquer ponto fronteiriço de conexão e sem interoperabilidade interna. A decisão tomada de optarmos pela manutenção da bitola ibérica na rede nacional é, assim, a mais racional, pelo menos transitoriamente, tanto mais que nos suportes de apoio dos carris, vulgo travessas, existem duas furações que permitirão a futura e oportuna transição para a bitola europeia, mais estreita, caso a UE pressione e Espanha decida fazer esse investimento, o que obviamente obriga a intervenção do nosso Governo junto das partes.
Há que recuperar o atraso ferroviário e assegurar que a deslocação de pessoas e mercadorias seja moderna, eficiente, sustentável e lucrativa.