UM SISMO E UM GRANDE ABALO
Na madrugada do dia 6 de fevereiro, um sismo de elevada magnitude atingiu territórios do sul da Turquia e do norte da Síria, tendo causado mais de 50 mil mortos e afetado perto de 30 milhões de pessoas.
Em Portugal, à semelhança do que sempre sucede quando ocorrem estes eventos, surgiram os habituais debates com os mesmos especialistas, que repetiram o que no seu dia a dia alertam, sem que ninguém os oiça, e gerou-se a recorrente discussão sobre se o país está ou não preparado para resistir e dar resposta a uma catástrofe desta grandeza.
Tirando os técnicos, muitos parecem querer evitar a resposta óbvia que, por poder ser inconveniente, é contornada com outras explicações, embora ache que, na generalidade, já interiorizámos a ideia de que também nos pode vir a acontecer algo parecido.
O território continental e insular de Portugal localiza-se em zonas sujeitas à ocorrência de eventos sísmicos, embora o grau de risco não seja igual em todas as regiões, e detemos um bom conhecimento sobre as causas, possibilidades de localização, mas que é quase nulo quanto à previsão de um evento.
Por receio, conscientes da exposição ao risco, colocamos as perguntas de uma forma cautelosa, não vá o Diabo tecê-las: se acontecer o mesmo em Portugal, as consequências serão idênticas? A formulação correta, embora premonitória, deverá ser “quando acontecer”, porque vai acontecer um dia.
Capacidade de resposta
Quanto à outra questão, a de sabermos se Portugal está preparado para responder a uma catástrofe desta grandeza, a resposta tem de ser clara: Portugal, como qualquer país do mundo, não está preparado para responder a um desastre desta natureza ou, quando muito, parcialmente preparado.
É óbvio que temos procurado fazer muita coisa, estudar, obter informação e capacidade para poder assegurar resposta, mas a questão é estrutural e de muito difícil solução. Tal como na Turquia, dispomos de conhecimento, de técnicos qualificados e de legislação avançada, mas a qualidade de grande parte do património edificado é má, por ser antigo, por estar degradado e ter sido construído antes de ser obrigatório o cálculo estrutural resistente a solicitações sísmicas.
Temos uma parte significativa de edificado capaz de resistir aos sismos, sobretudo as construções mais modernas, mas será que os nossos hospitais principais e demais infraestruturas vitais, incluindo os caminhos de acesso que podem ficar impedidos por escombros, têm condições para continuar em funcionamento no caso de um sismo com esta dimensão? Certamente que os planos emergência terão avaliado e identificado estas e outras questões, mas é importante garantir que a informação chegue aos cidadãos.
Todos temos de estar conscientes da capacidade da resposta que poderá ser dada e com o que poderemos contar. Contudo, como povo de fé, não nos basta rezar.
Um forte abalo
Entretanto, também sofremos um forte abalo, embora não telúrico, mas que pode ter feito colapsar uma parte do edifício da Igreja portuguesa, quiçá um ou outro pilar da crença e da fé, e que apenas colheu de surpresa os que pensam que as desgraças só acontecem aos outros.
Oito dias depois do sismo da Turquia e da Síria, veio a público o relatório sobre os abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa, que identificou 512 testemunhos relativos a 4815 vítimas. Desde então, o número de denúncias cresce e não é possível precisar o número de crianças violentadas, porque nem todas, hoje adultas, têm coragem de dar a cara e muitas já faleceram.
Em setembro de 2002, quando estalou o escândalo da Casa Pia, também ficámos surpreendidos, embora nunca tenha percebido porquê, uma vez que os locais onde os alunos se prostituíam eram públicos e conhecidos e, em boa verdade, ninguém fez nada para o evitar. Porém, daquela vez, o que estava em causa era algo mais grave, um esquema de entregas ao domicílio para utilização reservada por figuras públicas. Concluímos que o Estado não foi capaz de tomar conta das crianças pobres e dos órfãos que estavam à sua guarda e que a Casa Pia se tinha tornado numa casa dos horrores.
O relatório de 13 de fevereiro veio agora mostrar que a instituição em que confiamos para moldar as mentes e incutir bons princípios nos nossos filhos, a Igreja, afinal tem, como seus agentes, indivíduos com desvios de personalidade, com vícios e taras, sem princípios católicos, morais e éticos, os quais, segundo as declarações dos denunciantes, até olham para as suas vítimas como insanes pecadores que perversamente empurravam para o confessionário onde se redimiriam do pecado de estupro que lhes haviam infligido, numa repetida violência sobre desprotegidos e indefesos. Pior é impossível!
A maioria dos casos teve lugar em seminários, colégios internos, instituições de acolhimento, em sacristias, confessionários, na casa dos párocos e nos agrupamentos de escuteiros, ou seja, exatamente onde nunca deviam ter acontecido.
A dimensão de escândalos internacionais semelhantes e os frequentes zunzuns domésticos já faziam antever que na nossa terra, apesar dos bons costumes, não seria diferente. Embora o relatório reconheça que o número de casos praticados por membros da Igreja é pequeno, quando comparado com a dimensão dos abusos sexuais em geral, tal não atenua, nem serve de desculpa, tanto mais que a resistência da Igreja em aceitar os factos foi suficientemente elucidativa.
Trata-se de uma situação em que os números e as percentagens pouco importam, pois só é relevante o que não é mensurável, ou seja, a ausência de estrutura moral e de princípios humanos e cristãos. Mais um forte abalo na Igreja que, sismo após sismo, pode estar a caminho de outro cisma.