SLAVA UKRAINI A FIBRA DE UM POVO – No dia 24 de fevereiro assistimos ao que, sendo previsível, ninguém queria ver como uma efetiva possibilidade: Putin invadiu a Ucrânia, chamando “operação militar especial” a uma invasão massiva e apoiada em meios desproporcionados.
Pertenço a uma geração que sabe dar valor à liberdade, aos valores democráticos e ao direito à soberania dos povos e que sentiu na pele o que são guerras injustas e as consequências que trazem para as partes envolvidas. Por isso, sabemos distinguir as diferenças entre o bem e o mal e entre os “bons” e os “maus”. Fomos marcados pelo pós-guerra, pela barbárie nazi e por guerras entre povos europeus que nos fizeram reviver o que de pior tem a raça humana. Não caímos na tentação de considerar que a razão está sempre do lado dos “bons” e que a culpa estará sempre do lado dos “maus”, porque a história recente e as atitudes obrigaram-nos a meditar. Embora as imagens da guerra do Vietname nos tivessem deixado estupefactos e chocados, no caso das execuções sumárias e de crianças a arder com napalm, nada é comparável às atrocidades que os alemães cometeram, em nome de ninguém e de nada, numa barbárie sequiosa e incontrolada, que visava o extermínio de um povo, o judeu, a par de uma visão imperialista de ocupação de vastos territórios, à semelhança do que Roma fizera.
Com o fim do nazismo e com a pacificação da Europa, a convivência podre com a URSS permitiu-nos pensar que não voltaríamos a viver tempos tão bárbaros e insensíveis. A Perestroika (reestruturação) e a Glasnost (transparência), políticas reformistas de Gorbachev entre 1985 e 1991, estiveram na base do derrube do muro de Berlim no final de 1989 e da desagregação da URSS com a independência das repúblicas que a integravam, muito embora algumas nunca tivessem cortado o cordão umbilical alimentado pelos governos fantoches instalados. A carneirada apoia o pensamento maquiavélico e czarista de Putin.
UM PAÍS LIVRE E EUROPEU
A Ucrânia ousou pensar diferente e querer ser um país livre e europeu, aspirando integrar a União Europeia e, no limite, a NATO, mas cedo começou a pagar caro a fatura da ousadia. O mundo ficou ciente da fibra e da coragem deste povo que cada vez menos tem a ver com a vizinha Rússia e que, por isso, conquistou o respeito e a admiração do mundo livre, defensor dos princípios democráticos e respeitador da Carta das Nações Unidas. Em janeiro de 1990, mais de 400 mil ucranianos fizeram uma corrente humana que ligou a cidade de Lviv, hoje sob fortes bombardeamentos, à capital Kiev, agitando a bandeira azul e amarela que Moscovo não tolerava, e um ano depois a Ucrânia ficou independente. Em 2004, durante a campanha eleitoral, o candidato pró-ocidente, Viktor Yushchenko, foi envenenado e o seu opositor Viktor Yanukovych, um peão de Vladimir Putin, saiu vencedor. O resultado foi fortemente contestado e, por isso, após diversas peripécias e um conturbado período designado por “revolução laranja”, Viktor Yushchenko, já recuperado, foi eleito Presidente. Uma segunda demonstração da fibra do povo ucraniano. Todavia, o seu governo desmoronou-se e, em fevereiro de 2010, Viktor Yanukovych sucede-lhe. Em 2014, cedendo à pressão de Moscovo, anuncia que não assinaria a integração da Ucrânia na União Europeia, e o povo volta a sair à rua e a mostrar a sua fibra.
PROTESTOS EM DOCUMENTÁRIO
Tratando-se inicialmente de um movimento de estudantes universitários (os suspeitos do costume) e suportado por personalidades com visibilidade pública, rapidamente aglomerou cidadãos de todas as idades, credos, raças e níveis culturais, tomando dimensão nacional. Na Netflix está disponível um extraordinário documentário, “Winter On Fire: Ukraine’s Fight for Freedom”, cujo visionamento recomendo. Feito integralmente com imagens reais e contendo cenas bastante violentas, registou para a posterioridade os protestos da Praça Maidan e zonas circundantes, iniciados em novembro de 2013, estendendo-se por cerca de 14 meses, conduzindo, também em 22 de fevereiro, mas de 2014, à fuga de Viktor Yanukovych, que tinha chegado ao poder apregoando ideais europeítas. De imediato Putin ocupou a Crimeia, deleitado com a impassividade do mundo ocidental. O documentário não esconde o uso da força e da violência desproporcionada, tal como agora, em que os russos infiltraram assassinos profissionais na própria polícia ucraniana e o resultado foi um banho de sangue. Mas não foi sangue derramado em vão, porque durante oito anos os ucranianos viveram o sonho europeu na expectativa de que a liberdade é alcançável.
OPERAÇÃO MILITAR ESPECIAL
Entretanto, no dia 24 de fevereiro assistimos ao que, sendo previsível, ninguém queria ver como uma efetiva possibilidade: Putin, numa atitude digna de um czar demente e saudoso do império perdido, invadiu a Ucrânia, chamando “operação militar especial” a uma invasão massiva e apoiada em meios desproporcionados, mas adequados à vontade de arrasar um país, eliminar os homens enquanto meio de resistência e tentar calar e aniquilar uma nação. Registe-se que tudo acontece na véspera ou no dia seguinte a um simbólico feriado nacional russo, o Dia do Defensor da Pátria, que se celebra a 23 de fevereiro. A Ucrânia vê as suas mulheres e crianças partirem com a incerteza espelhada num olhar vazio e receoso de não mais voltarem, embora a resiliência e a fibra do povo ucraniano permitam perspetivar essa possibilidade. Perante o atraso na consumação da chacina e a remota (im)possibilidade de intervenção da NATO, um Putin louco ameaça com o seu arsenal nuclear e com a destruição do mundo, como nos filmes de ficção.
Fomos ingénuos quando acreditámos que a queda do muro de Berlim traria o fim do comunismo e a libertação e união dos povos europeus. Com isto ficou demonstrada a incapacidade de reação de uma União pouco mais do que monetária e que nada pode garantir, apenas crente na paz e nas boas intenções de vizinhos pouco recomendáveis. E agora?