CARLOS MINEIRO AIRES

PRR E REGULAÇÃO PROFISSIONALO debate em torno da existência e do papel das ordens profissionais é recorrente e aviva-se sempre que atuações isoladas por parte de alguma destas são mediatizadas, pelos melhores ou piores motivos, sendo que a sua proliferação também não ajuda ao necessário esclarecimento público. 

Recorde-se que as ordens profissionais foram criadas prioritariamente com vista à defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e à salvaguarda do interesse público, o que é atingido pela autorregulação de profissões cujo exercício exige independência. A sua existência não se destina, pois, a servir os membros. Assim, o seu papel é reconhecido quando a sua atividade e voz são úteis ao poder político, mas quando as suas posições são incómodas e denunciam situações que atentam contra o bem-estar e direitos dos cidadãos, questionando atuações institucionais, a reação é de rejeição quanto à razão da sua existência e poderes atribuídos. A lei que enquadra e permite criar novas ordens também é clara e contém uma norma imperativa que impede as ordens profissionais de exercerem ou de participarem em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou laborais dos seus membros. Estas atividades, se exercidas, são por isso passíveis de punição. O facto de serem os próprios regulados a pagarem estes serviços, através das quotas mensais, bem como o facto de os juízos disciplinares serem assegurados pelos pares são dois dos argumentos das vozes discordantes, muito embora, no que respeita ao reconhecimento do mérito, o entendimento já não vá no mesmo sentido e, por norma, nunca falam do que o Estado deixa de gastar. 

ENQUADRAMENTO LEGAL – Hoje, existem em Portugal 20 ordens profissionais, tendo as duas últimas sido criadas em 2019, a Ordem dos Fisioterapeutas e a Ordem dos Assistentes Sociais, pelo que, desconhecendo a representatividade destas duas, as 18 restantes representam cerca de 430 mil profissionais, cuja dimensão associativa individual varia entre as poucas centenas e mais de oito dezenas de milhares de membros. De acordo com a Lei 2/2013, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, a criação de uma ordem é de carácter excecional, podendo apenas ter lugar quando visar a tutela de um interesse público de especial relevo que o Estado não possa assegurar diretamente, for adequada, necessária e proporcional para tutelar os bens jurídicos a proteger e respeitar apenas a profissões sujeitas aos requisitos aí previstos. Pelos vistos, já foram identificaram 20 casos em que o Estado não o pode fazer, ou em que as pressões políticas avançaram nesse sentido. Por outro lado, a lei estipula que a cada profissão regulada corresponda apenas uma única associação pública profissional, podendo esta representar mais do que uma profissão, desde que tenham uma base comum de natureza técnica ou científica, exigência legal que, pelo menos uma vez, já foi violada. 

A existência das ordens advém de formas de organização históricas e com provas dadas no reconhecimento da qualificação profissional e como garante de confiança pública, modelo a que o próprio Estado e Tribunais recorrem para suporte e aconselhamento. O facto de algumas delas imporem alegadas barreiras na admissão, no acesso à profissão e a sua atuação não ser transparente em termos de proporcionalidade e também no que ao exercício de competências disciplinares diz respeito, contribui para a fundamentação da necessidade de alterações legislativas, embora sejam mais as vozes do que as nozes, porque, por exemplo, no caso da Ordem dos Engenheiros a questão nem se coloca. 

PRÉVIA APROVAÇÃO DE REFORMAS – Entretanto, como não há almoços grátis, soubemos que os milhões da bazooka associada ao PRR estão condicionados à prévia aprovação de reformas e investimentos que constam de 1738 páginas, entretanto descobertas, e das quais constam os detalhes dos compromissos do Governo. As ordens profissionais não escaparam às medidas remetidas para Bruxelas, o que não constitui novidade para ninguém, pois já tinham sido impostas pela troika, constam do relatório da OCDE e foram plasmadas pela Autoridade da Concorrência (AdC), para além de constituírem imposições da UE. A própria Lei das Associações Profissionais, datada de 2013, já previa que a revisão do enquadramento legal das ordens profissionais tivesse tido lugar em 2018, pelo que já existe um atraso de três anos. Desta vez, porém, as propostas avançam com a intenção de serem criados órgãos novos, maioritariamente compostos por membros externos à respetiva associação pública profissional, com competências, designadamente, sobre matérias disciplinares, acesso à profissão, em especial a determinação das regras de estágio, e reconhecimento de habilitações e competências obtidas no estrangeiro. Ou seja, perspetiva-se a intervenção vinculativa de quem não sabe e nem conhece, restando saber se os cargos terão de ser remunerados através das quotas das associações profissionais. Esta visão liberal visa reduzir drasticamente o poder regulatório das ordens profissionais, em alguns casos com razão, noutros por pura ignorância, uma vez que, por exemplo, a AdC, ignorando o risco associado a tal imprudência, vai ao ponto de sugerir ao Governo que qualquer cidadão, mesmo sem qualificação académica adequada, possa exercer atos de engenharia. 

Felizmente que as ordens da área da Saúde não foram abrangidas por esta deriva liberal, porque poderíamos vir a correr sérios riscos nas idas ao médico ou nas mais pequenas cirurgias. Como diz o povo, “não vá o sapateiro além da chinela…” Uma vez que a regulação pressupõe que estejam exaustivamente identificados os atos regulados, certamente que esse também não poderá deixar de ser um dos desígnios da revisão legislativa, sob pena de estarmos a discutir que matéria preenche o vácuo. 

Assim, só o resultado final poderá levar-nos a perceber os reais objetivos da intenção reformista, esperando que, pelo menos desta vez, o Parlamento tenha em conta que as profissões são cada vez mais tecnológicas e estão em permanente evolução, pelo que já não faz sentido criar modelos estáticos de regulação com eficácia que é efémera, porque o constante progresso obriga a respostas imediatas e adaptáveis aos constantes desafios da acelerada época de transição em que vamos viver, o que só as ordens profissionais conseguem antecipar e compreender, devendo ser-lhes dada a faculdade de assegurarem essa gestão. 

 

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