CARLOS MARTINS

CONTRIBUTO PARA A POLÍTICA DE HABITAÇÃO

Após a apresentação pelo Governo de linhas de atuação para a política pública de habitação, temos assistido a um vasto conjunto de declarações e a calorosas discussões de especialistas do setor mescladas com comentadores de ocasião, muitas vezes carreando para esta importante reflexão um sem-número de convicções sem bases de informação credíveis.

A correção dos problemas de acesso a habitação e das distorções identificadas no mercado é, por uns, associada a problemas do mercado de arrendamento e, por outros, a fatores que perturbam uma maior dinâmica da construção de imóveis para habitação, nomeadamente o demorado processo de licenciamento, ou ainda a causas que durante muitos anos limitaram o investimento dos proprietários na renovação do parque habitacional.

Um olhar holístico sobre a temática do direito à habitação e o seu enquadramento no contexto histórico que nos fez chegar à presente situação revela-se matéria complexa e tem múltiplos fatores de ponderação. Com muita facilidade encontramos casos concretos e específicos que podem justificar os variados olhares sobre a matéria.

Uma ponderação histórica desapaixonada permite inferir que se trata de um problema que nos acompanha de forma recorrente desde as dinâmicas urbanas dos anos 1960, que determinaram o processo de despovoamento rural das regiões do interior e um desordenado processo de urbanização no litoral, em particular nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e para as quais não se encontraram medidas adequadas.

Hoje temos um parque habitacional degradado e abandonado em muitos núcleos rurais do interior do país e deficit de oferta de habitação nos mais dinâmicos núcleos urbanos, com destaque para municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e região do Algarve.

Igualmente degradado está o parque habitacional de muitos proprietários que durante anos viram as rendas congeladas e têm hoje inquilinos com rendas que não permitem suportar o valor do IMI, muito menos as obras de conservação adequadas.

Construção Clandestina

Na minha memória estão muito presentes os bairros de barracas que pontuavam várias áreas da cidade de Lisboa e mais tarde vivi profissionalmente a dinâmica da construção clandestina nos municípios da periferia de Lisboa.

Enquanto técnico no município de Loures, na época integrando o território do entretanto criado município de Odivelas, acompanhei de perto os processos tendentes a dotar essas áreas de infraestruturas básicas: redes de abastecimento de água, redes de drenagem urbana doméstica e pluvial, rede de iluminação pública, rede de eletricidade, pavimentos em passeios e arruamentos. Tenho presente que, na época, Loures em termos populacionais ocupava o segundo lugar no país, com cerca de mil hectares do seu território integrando operações urbanas clandestinas em mais de 150 “bairros clandestinos”.

O município de Sintra, vizinho de Loures, integrava no seu território o maior bairro de génese ilegal da Europa, o bairro de Casal de Cambra. Sendo atualmente o segundo município do país em termos populacionais, tem no seu território 95 AUGI (Áreas Urbanas de Génese Ilegal), muitas das quais já objeto de emissão de alvará.

Lembro também o trabalho realizado em Lisboa, onde ao longo de mais de uma década o município de Lisboa promoveu o PER – Programa Especial de Realojamento e acabou com mais de 10 mil barracas de Lisboa, onde viviam mais de 35 mil pessoas.

Antes da criação do município de Odivelas, cerca de 100 mil habitantes do município de Loures residiam nos designados “bairros clandestinos” e os processos para a legalização desses núcleos emperravam devido a falta de enquadramento legal.

Foi o atual primeiro-ministro António Costa, enquanto vereador no Município de Loures, que se empenhou fortemente no desígnio de um quadro legal para permitir a reconversão de muitos desses “bairros clandestinos” e é desse seu entusiasmo e vontade que mais tarde, em funções governativas, promove a publicação da Lei n.º 91/95, de 2 de setembro, que cria condições para a reconversão das AUGI, que tem permitido a legalização de loteamentos de génese clandestina e licenciamento de muitas das construções.

De acordo com o “Relatório com o diagnóstico dos processos de reconversão das AUGI”, publicado pela Direção-Geral do Território, em 30/01/2020, na área metropolitana de Lisboa temos mais de 440 AUGI, distribuídas por 10 municípios.

Considerações a Fazer

Esta reflexão não visa explicar ou justificar os problemas que se vivem no mercado da habitação, nem tem a pretensão de apresentar uma solução para um problema tão complexo, talvez por isso importe fazer algumas considerações que permitam uma conexão entre este registo histórico e o atual momento de reflexão da política pública de habitação.

A construção de habitação nova para suprir as falhas de mercado, ao aumentar a oferta não resolverá os elevados custos de construção, poderá no entanto conhecer correções à especulação do custo do solo e em margens excessivas de comercialização.

A construção nova poderá implicar expansão urbana mobilizando solos, implicando a construção e extensão de infraestruturas. Já a renovação do parque habitacional permite otimizar infraestruturas urbanas, mas geralmente determina custos de construção que podem ser significativamente superiores. Em ambos os casos entre a decisão de promotores, mesmo que públicos, e a emissão de licenças de utilização não são de esperar prazos inferiores a dois ou três anos.

Obras de beneficiação em imóveis devolutos e a sua colocação no mercado de arrendamento poderá ser uma solução que conduza a maior celeridade, mas implica apoios a proprietários, nomeadamente todos os que têm um histórico de rendas fixadas administrativamente por uma legislação que ignorou durante anos e anos as expetativas dos proprietários.

Regresso às AUGI para culminar o contributo para a reflexão das políticas públicas de habitação, referindo que nas AUGI da Área Metropolitana de Lisboa o número de lotes expectantes (vagos) são em número quase igual aos que se encontram ocupados. Temos portanto milhares de lotes urbanos já com emissão de alvará ou em vias de emissão de alvará, dotados de infraestruturas urbanas, que poderão ser mobilizados para programas de habitação municipal em articulação com proprietários, que aqui poderão encontrar forma de valorizar ativos, sem necessidade de mobilizar solos e onerosa construção de infraestruturas.

Mobilizar lotes vagos em AUGI, fomentar a autoconstrução com projetos-tipo, dinamizar a construção cooperativa, poderão ser contributos para melhorar o ordenamento do território, otimizar infraestruturas e aumentar as opções para dinamizar o mercado e acesso à habitação, ao mesmo tempo que se contribui para dar coerência urbana a territórios relevantes nos municípios da Área Metropolitana de Lisboa.

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