PORTUGAL NÃO ALCANÇA EM 2020 QUALQUER META… – Portugal não alcançou em 2020 qualquer meta para os resíduos urbanos, um assunto que depende do compor tamento de 10 milhões de por tugueses, pois as metas referenciadas só serão alcançadas com maior empenho de todos nós.
Num primeiro momento quando li a manchete no DN/Lusa de 8 de novembro de 2021, a mesma apelou ao meu interesse futebolístico… não me recordava que tivesse havido jogo, mas por momentos pensei que alguém se dispunha a criticar a Federação Portuguesa de Futebol, talvez o selecionador nacional, a falta de empenho dos jogadores ou, num espírito mais ameno, se fosse referir a um qualquer jogador que num momento menos inspirado falhou um penalti ou, quem sabe, atribuir culpas a um guarda-redes que deu um frango… também poderia ser uma abordagem mais cordata que faria realçar o azar do sorteio que tinha ditado um grupo muito complicado ou mesmo atirar as culpas a uma arbitragem que favoreceu o adversário. Se de futebol se tratasse, sabia que a culpa não era minha… faz tempo que não jogo, apoio de forma incondicional a seleção nacional, não me atrevo a ser treinador de bancada, quando muito um resultado menos positivo faz-me perder uma oportunidade de ficar mais feliz.
RELATÓRIO ANUAL RESÍDUOS URBANOS – A curiosidade fez-me procurar o que se passava com Portugal e esclarecer a razão da manchete… No Diário de Notícias era referido: “Portugal não alcança em 2020 qualquer meta nos resíduos urbanos”; no Correio da Manhã, “Portugal não cumpre meta dos resíduos”; no Jornal ONLINE, “Portugal não alcançou em 2020 qualquer meta para os resíduos urbanos”, título usado também no Mais Ribatejo, e com o Jornal de Notícias a escolher “Meta para resíduos urbanos não foi cumprida”. Afinal a notícia tinha por base a publicação do Relatório Anual Resíduos Urbanos 2020, em outubro de 2021, pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), onde se apresentavam os dados da gestão dos resíduos urbanos em Portu- gal relativos a 2020.Afinal trata-se de um assunto que não depende do desempenho de um pequeno número de intervenientes, como no futebol, neste caso o sucesso depende do comportamento de 10 milhões de portugueses, pois as metas referenciadas só serão alcançadas por Portugal com maior empenho de todos nós. Afinal este jogo também me diz respeito, afinal os meus comportamentos estão ligados ao resultado. Sobre o mesmo assunto a revista Ambiente fez o seguinte título: “Lipor [Serviço Intermunicipalizado de Gestão de Resíduos do Grande Porto] atinge todas as metas definidas no PERSU 2020” (trata-se do Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos), o que deixa a esperança de que é possível alcançar as metas, podemos acalentar a ideia de que se numa região do país foi possível, também o será no seu conjunto. Valerá a pena um olhar mais focado, para entender o que está em jogo e como se pode almejar no futuro títulos mais mobilizadores e que fomentem a nossa auto-estima enquanto cidadãos portugueses, porque não me conformo com este tipo de título, que parece remeter as causas para algo difuso: será que ao referir que Portugal não atinge nenhuma das metas se quer endereçar culpas ao Governo? À APA? Às comissões de coordenação regional? Aos municípios? Ou a todos os 10 milhões de residentes em Portugal? Ao dizerem que Portugal não atingiu nenhuma das metas, talvez os autores não se assumam como parte dos resultados obtidos. Já se fosse um sucesso, poderia dar um título: “Conseguimos superar as metas…”
METAS EM CAUSA – Portugal tem assumido desde 1996 uma política pública setorial muito alinhada com a União Europeia e poderemos mesmo dizer que se trata de alguma forma da europeização da política pública, dada a sua dependência em termos de metas e objetivos de diretivas europeias. Podemos referir que se trata de uma política pública onde Portugal tem sido citado internacionalmente como um caso de sucesso, quanto aos avanços conseguidos face à situação de partida, pois importa lembrar que em 1996 mais de 80% dos resíduos urbanos eram encaminhados para lixeiras e que menos de 1% eram objeto de recolha seletiva para reciclagem.Para fazer essa viagem ao tema, importa referir quais são as metas e dessa forma procurar compreender onde radicam os problemas e onde poderão estar as soluções, procurando que as referências feitas sobre a Lipor possam ser o padrão nacional, por forma a que a manchete passe a ser: “Portugal alcançou todas as metas… nos resíduos urbanos”. As metas definidas para 2020 em matéria de resíduos urbanos eram as seguintes: 1) meta nacional de prevenção de resíduos; 2) meta de deposição de resíduos urbanos biodegradáveis em aterro; 3) meta de preparação para reutilização e reciclagem de resíduos urbanos; 4) metas de recolha seletiva.Prejudicando o rigor técnico, importa de forma simples dar nota do que está em causa em cada uma das metas, pois só assim teremos sensibilidade à situação atual e poderemos contribuir para uma reflexão sobre os desafios que temos de ultrapassar.
META NACIONAL DE PREVENÇÃO DE RESÍDUOS – A meta nacional de prevenção da produção de resíduos estabelecia para 2020 uma redução de 10% em peso, face ao valor apurado em 2012.Todos os estudos académicos e das organizações internacionais como o Banco Mundial, International Solid Waste Association (ISWA) e a OCDE concluem que a produção de resíduos urbanos está associada à população (demografia) e ao consumo traduzido pelo rendimento (PIB per capita dos países ou rendimento das famílias).
Na União Europeia, Portugal ocupa uma posição média em termos da produção de resíduos urbanos. Dados da EUROSTAT referem para o ano de 2019 que a média europeia foi de 502 kg por habitante, com Portugal a atingir 513 kg por habitante, sendo que a Dinamarca apresenta 844 kg por habitante e a Roménia 280 kg por habitante. A meta estabelecida por Portugal para 2020 estava indexada a 2012, ano de forte retração económica das famílias portuguesas devido a medidas decorrentes da intervenção da troika, pelo que a partir de 2015 se assiste a uma recuperação do consumo das famílias e a um aumento da produção de resíduos urbanos. Podemos concluir que, se por um lado é desejável uma prevenção e houve, porque o crescimento da produção ficou aquém do crescimento económico, por outro lado assistiu-se a uma situação que tem similitude com o que ocorre em todo o mundo.Trata-se de uma matéria que vai merecer novas abordagens com uma sociedade orientada para a Economia Circular, mas que deixa pouco espaço de manobra a medidas internas numa economia globalizada. Podemos concluir que houve reduzido bom senso no estabelecimento da meta. A produção anual per capita em 2020 foi de 513 kg, quando a meta apontava para uma produção anual de 410 kg por habitante.
META DE DEPOSIÇÃO DE RESÍDUOS URBANOS BIODEGRADÁVEIS EM ATERRO – Já a meta de redução da quantidade de resíduos biodegradáveis em aterro em 2020, que preconizava uma redução de 35% face aos quantitativos totais produzidos em 1995, tem um histórico associado à forma como se calcularam os valores de 1995, numa época em que praticamente não havia básculas nos locais de destino e por isso com base em amostras e indicadores pouco representativos.Esta meta tem um enquadramento temporal e deveria ser alcançada pelas soluções técnicas implementadas desde 1996 e pelo reforço da recolha seletiva de biorresíduos. As opções tecnológicas para o tratamento da fração biodegradável de resíduos urbanos não tiveram o sucesso esperado e a opção da recolha seletiva de biorresíduos decorre de uma imposição europeia que já está plasmada em legislação nacional recente. Estamos perante grandes desafios para os municípios na organização dos sistemas de recolha, mas seguramente todos nós estaremos perante profundas alterações de comportamento.A meta estabelecida para deposição de biodegradáveis em aterro era de 788.452 toneladas e o valor apurado foi de 1.187.426 toneladas.
RESTANTES METAS – As restantes metas aplicam-se ao conjunto dos Estados-membros, muito orientadas para a reciclagem e valorização de resíduos no quadro da política europeia para a Economia Circular.A meta de preparação para reutilização e reciclagem de resíduos urbanos, que estabelecia para 2020 o valor de 50% em peso do total de resíduos urbanos produzidos, conhecerá objetivos bem mais ambiciosos, sendo que a recolha seletiva de biorresíduos e o incremento da recolha seletiva de embalagens para reciclagem vão continuar a colocar uma grande exigência na sensibilização dos cidadãos para comportamentos mais amigos do ambiente. A meta de preparação para reutilização e reciclagem estabelecida em 50% no ano 2020 ficou nos 38%, tendo atingido em 2019 o maior valor que foi de 41%.As metas da recolha seletiva para 2020 tinham uma métrica nacional e estavam indexadas a cada um dos sistemas regionais de gestão de resíduos urbanos. Os resultados evidenciam grandes disparidades regionais.O comportamento global permitiu um desempenho muito próximo da meta nacional. Em termos de recolha seletiva de embalagens, 10 sistemas regionais atingiram ou superaram as metas e em termos nacionais o desvio das metas foi pouco significativo.
MOBILIZAR OS CIDADÃOS – A pedido da Sociedade Ponto Verde (SPV), o OBSERVA – Observatório de Ambiente, Sociedade e Território, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/ULisboa), realizou um estudo sobre as práticas, representações e atitudes dos portugueses face à gestão de resíduos urbanos, com um enfoque específico nos Sistemas Integrados de Gestão de Resíduos de Embalagens (SIGRE), divulgado em maio de 2021, que evidencia que cerca de um terço dos portugueses não tem hábitos alinhados com a reciclagem e os restantes dois terços têm contributos diversos, mas evidenciam comportamentos alinhados com valores ambientais.O ano 2020 foi marcado pela pandemia, com profundas alterações nas nossas vidas, com maior produção de materiais descartáveis, nomeadamente máscaras e luvas, com alterações organizacionais nas recolhas municipais e com constrangimentos operacionais, sendo de destacar que as unidades de tratamento mecânico evidenciam baixas taxas de utilização. Portugal conheceu dois anos de atraso nos financiamentos europeus para o setor, o que por si só faria deslizar as metas traçadas para 2020 para o ano de 2022, mas toda a conjuntura que vivemos perturba a normal implementação de novos sistemas de recolha seletiva e limita a necessária sensibilização de todos nós para este desafio.Os estudos realizados evidenciam o quão é essencial mobilizar os cidadãos para comportamentos alinhados com a política pública e as metas, pois estamos perante um tema onde a manchete “Portugal alcança e supera todas as metas nos resíduos urbanos” terá de ter em cada cidadão um ator empenhado. E de forma otimista termino a referir que a publicação dos resultados de 2020, em outubro de 2021, evidencia uma trajetória positiva da APA, que nos últimos anos vem encurtando os prazos de edição de importantes documentos de avaliação ambiental, informação essencial para o desenho de políticas públicas de sucesso