NENHUM DESAFIO É DEMASIADO GRANDE – Pandemia. Colapso do Afeganistão. Guerra na Europa. A ainda breve terceira década do século XXI tem sido trágica e carregada de perguntas para as quais não temos resposta. Povos de todo o mundo vivem desafios de grande magnitude.
As nossas assunções sobre a realidade são postas em causa. A paz, a democracia, a segurança – valores que tínhamos como adquiridos – estão na corda bamba. Intensifica-se a ideia de que estamos a atingir o limiar da progressão: pela primeira vez há, de facto, uma geração que se encaminha para viver com menos recursos, com menos segurança e com menos paz do que as gerações dos seus pais e avós. Cabe às lideranças políticas empresariais inverter este rumo autodestrutivo em que mergulhou a humanidade. A guerra na Ucrânia, resultado de uma invasão em ostensivo desrespeito pelo Direito Internacional e pela Ordem de Segurança Internacional estabelecidas, ameaça mudar radicalmente a forma como vivemos. Sabemos como começou a guerra. Mas não sabemos como acabará. O que sabemos é que o absurdo que vivemos hoje já o era antes de o ser – e essa evidência não foi suficiente para que ele deixasse de se concretizar. Como uma profecia auto-realizável, a Europa e o mundo podem estar à beira do precipício das armas químicas e nucleares sem a verdadeira noção disso. Rezemos para que nunca cheguemos a esse ponto de loucura cataclísmica.
MUDANÇAS EM CURSO
Entretanto muita coisa já mudou desde 24 de fevereiro. Os países canalizam mais e mais recursos para orçamentos de defesa. O mundo organiza-se em novas alianças ou reforça os blocos já existentes. A desconfiança é a norma nas relações internacionais. A Rússia caiu num frenético turbilhão de desligação da economia mundial e da globalização – um isolamento sem precedentes de uma única nação. E se a China se envolver indiretamente no conflito, muita coisa mais poderá mudar para sempre o mundo como o conhecemos até aqui – desde logo, um regresso mais do que provável das formas mais agressivas de nacionalismo económico.À nossa frente forma-se uma crise social de proporções inimagináveis. A inflação é galopante. Todos os dias as famílias perdem uma parcela do poder de compra como areia que se esvai entre os dedos. As mudanças de políticas nos Bancos Centrais prometem subir as taxas de juro que ameaçam as economias altamente endividadas, como a portuguesa. As sanções à Rússia e o puzzle geopolítico que o Ocidente joga com a China anuncia novas disrupções nas cadeias logísticas que se assumiram como a força motriz da globalização.
PAPEL DA POLÍTICA LOCAL
A única certeza é que o futuro será mais brutal e desagradável. Tipicamente, este é o tempo por excelência para a afirmação dos Estados Nacionais. A política local, porém, tem um papel insubstituível neste conflito. São os governos que determinam as quotas de refugiados. Mas são as autarquias que recebem as pessoas em fuga da guerra. São os governos que têm os exércitos. Mas são as autarquias que dão um abrigo, uma refeição quente ou até um emprego. São os governos que aplicam as sanções. Mas são as autarquias que criam políticas públicas que vertam uma visão humanista e de verdadeiro amor ao nosso semelhante.
Cascais, um território cuja identidade foi marcada pelo acolhimento de povos de todo o mundo em fuga de tragédias, perseguições e guerras, volta a estar à altura das suas responsabilidades históricas. Assumimos, desde a primeira hora, que a guerra na Ucrânia também é uma guerra contra os nossos valores de liberdade, democracia e primado da lei. Assumimos que a travaríamos não com armas, não com exércitos, não com força bruta, mas com a bondade dos nossos cidadãos, com solidariedade das nossas empresas e de braços abertos para quem nos procurasse. Erguemos uma bandeira da Ucrânia gigante na nossa baía, a 55 metros de altura, no mastro do navio Endeavour. Com ela mostramos ao mundo que a Ucrânia começa nesta ponta mais ocidental da Europa, porque é aqui que moram os nossos valores partilhados.
MISSÃO HUMANITÁRIA
Enviamos seis camiões TIR de ajuda humanitária para as zonas de fronteira. Foram centenas de toneladas de doações da comunidade em apenas duas semanas. Uma equipa da autarquia, liderada pelo Miguel Pinto Luz e com o espantoso apoio médico da Ocean Medical, deslocou-se à fronteira com a Roménia para resgatar 229 refugiados que viajaram de avião para Lisboa, numa parceria inédita da Câmara de Cascais com a Galp e a TAP. Enquanto esta missão decorria lá longe, na ponta leste da Europa, em Cascais um sem-número de trabalhadores da Câmara, voluntários e empresas (como a Jerónimo Martins, os hotéis Miragem e Pestana, Leroy Merlin, Celeiro Dieta, entre muitos outros) punham de pé não apenas a operação de ajuda humanitária, mas também os Centros de Acolhimento de deslocados. Com capacidade para 600 pessoas, podendo ir a um limite de 1000, Cascais criou todas as condições para, com dignidade, acolher quem precisa.Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Mas precisamos de fazer mais. Precisamos que os cidadãos nos ajudem a ajudar. É muito importante que quem possa, se comprometa a ser família de acolhimento ou ceda espaços habitacionais que possam receber estas mães com filhos. É crítico que as empresas criem, dentro das suas possibilidades, mais ofertas de trabalho para que as vidas que estamos a acolher tenham rapidamente um sentido.Apelo a que cada um de nós, nas suas reflexões, coloque a si mesmo a pergunta: “E se fosse com os meus?” Calçando os sapatos do outro, o que gostaríamos que fizessem por nós? Esta foi a pergunta que coloquei a mim mesmo, às nossas equipas municipais. Foi a pergunta que norteou toda a nossa ação de resposta a esta crise humanitária. Esta é a pergunta que deixo a cada um de vós. Ao contrário das reflexões no início deste texto, esta é a resposta que será certamente mais fácil de encontrar.