ANTÓNIO SARAIVA

O RELATÓRIO DRAGHI E O DILEMA EUROPEU: AMBIÇÃO OU AGONIA

Com a atenção focada em temas nacionais, o Relatório Draghi passou, entre nós, quase desapercebido. Poucos, entre as quais destaco a CIP, assinalaram a sua importância na construção das futuras estratégias e políticas da União Europeia.

Não será novidade o diagnóstico que faz sobre a trajetória de abrandamento económico na Europa e o enfraquecimento do crescimento da produtividade, levando a uma persistente perda de competitividade face aos Estados Unidos e à China. Tudo isto é conhecido. O primeiro impacto do relatório está na forma como apresenta o desafio da mudança.

Se a Europa não conseguir tornar-se mais produtiva, teremos de reduzir as nossas ambições, seja em matéria de novas tecnologias, de alterações climáticas, de independência na cena mundial ou de preservação do nosso modelo social. Ora, na visão de Draghi, se a União Europeia deixar de conseguir garantir ao seu povo os direitos fundamentais que estão na sua própria raiz – prosperidade, equidade, liberdade, paz e democracia num ambiente sustentável – então ela terá perdido a sua razão de existir. Estamos, então, face a um desfio existencial. E a única forma de responder a esse desafio é a Europa mudar radicalmente, para se tornar mais produtiva.

Imperativo de mudança

Na conferência de imprensa de apresentação do relatório, Draghi resumiu bem este imperativo de mudança quando uma jornalista que lhe perguntou se a alternativa ao que preconizava para a Europa era “morrer”: “Não”, respondeu, “é fazer isto ou será uma lenta agonia”.

Com a autoridade que lhe advém do seu papel na preservação do euro na crise das dívidas soberanas, Draghi identifica três áreas principais de ação para relançar o crescimento sustentável:

Em primeiro lugar, a Europa deve reorientar profundamente os seus esforços coletivos para colmatar o défice de inovação com os EUA e a China, especialmente em tecnologias avançadas.

Neste domínio, o problema está na dificuldade em passar da inovação para a comercialização e no facto de as empresas inovadoras que desejam crescer na Europa serem prejudicadas em todas as etapas por uma regulamentação inconsistente e restritiva.

Uma parte central desta agenda será, também, dar aos europeus as competências de que necessitam, de modo a conciliar as novas tecnologias e a inclusão social.

A segunda área de ação é um plano conjunto para a descarbonização e competitividade.

É aqui que o relatório desenvolve as orientações de uma estratégia industrial que combina diferentes instrumentos e abordagens políticas para diferentes indústrias. O objetivo é prosseguir no caminho da descarbonização preservando a posição competitiva da sua indústria.

A terceira área é aumentar a segurança e reduzir as dependências. Num mundo de geopolítica instável, em que as dependências se estão a tornar vulnerabilidades, a Europa tem de reagir. Draghi não advoga a via do protecionismo, mas defende a coordenação de acordos comerciais preferenciais e de investimento direto com nações ricas em recursos, a construção de stocks em áreas críticas selecionadas e a criação de parcerias industriais para garantir a cadeia de abastecimento de tecnologias-chave.

O relatório apresenta também uma estratégia para fortalecer a capacidade industrial para defesa e para o espaço.

Financiamento público e privado

Para cumprir os objetivos estabelecidos, Draghi estima ser necessário um investimento adicional anual de 750 a 800 mil milhões de euros, o que significa que a taxa de investimento da UE deve aumentar cerca de 22% do PIB para cerca de 27%, revertendo um declínio de várias décadas.

Para além de investimento público, serão necessários incentivos orçamentais para desbloquear o investimento privado. O estímulo necessário para o investimento privado terá algum impacto nas finanças públicas, mas os ganhos de produtividade podem reduzir os custos orçamentais.

São apontadas quatro vias para mobilizar o financiamento público e privado:

  • Construir uma verdadeira União dos Mercados de Capitais;
  • Concluir a União Bancária;
  • Reformar o orçamento da União Europeia para melhorar o seu foco e eficiência, bem como para apoiar o investimento privado;
  • A União Europeia deve continuar a emitir regularmente dívida comum (seguindo o modelo do “Next Generation EU”) para financiar projetos de investimento conjuntos que aumentem a competitividade e a segurança.

Finalmente, tão ou mais importante do que o financiamento, será a vontade de reformar a governação da União Europeia, aumentando a profundidade da coordenação e reduzindo a carga regulatória.

Resta saber como e até que ponto as orientações avançadas por Draghi e as suas propostas exigentes em termos financeiros e de capacidade de cooperação e coordenação serão prosseguidas no novo ciclo político que se vai iniciar.

Algumas das opções que apresenta não são novas e têm merecido forte resistência por parte de diversos Estados-membros.

O certo é que procrastinar decisões para preservar consensos apenas tem servido para produzir um crescimento mais lento, sem lograr os desejados consensos.

Com o seu prestígio, conhecimento e autoridade, Draghi cumpriu o mandato de que foi incumbido pela Comissão Europeia. Falta, agora, a vontade política para pôr em marcha as mudanças que podem salvar a Europa de uma lenta agonia.

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