SELETIVIDADE, SIM, MAS SEM DIRIGISMO
É hoje consensual que precisamos, na Europa e em Portugal, de uma estratégia capaz de assegurar uma base industrial renovada, mais forte e mais resiliente.
Necessitamos de uma estratégia capaz de acelerar o ressurgimento do protagonismo da indústria como atividade económica apta a competir numa economia mundial altamente concorrencial, com empresas inseridas em cadeias de valor globais e que participem na revolução industrial que está já a ocorrer. Não consiste, por isso, num mero retorno à indústria, mas na renovação de um tecido industrial capaz de defrontar novos desafios.
Sempre defendi que a política industrial não deve ter a pretensão de selecionar, à partida, vencedores, mas promover a produção de bens e serviços transacionáveis, alinhada com as tecnologias e tendências que vão formatar o futuro. O foco deverá ser, sobretudo, colocar a competitividade industrial como preocupação transversal em toda a intervenção do Estado na economia.
A par desta preocupação transversal, a política industrial implica opções que tenham em conta os grandes desafios que temos pela frente: a dupla transição ecológica e digital, certamente, mas também uma melhor integração nas cadeias de valor globais, a valorização dos nossos recursos endógenos, o aumento da produtividade pela incorporação de novas tecnologias nos produtos e nos processos.
Seletividade
Sim, a política industrial, como qualquer política pública, envolve escolhas, deve ser seletiva. Distribuir apoios indiscriminadamente é ineficaz e não conduz a nenhum lado. Sobretudo, devemos evitar apoios que nos levem a fazer sempre mais do mesmo, do mesmo modo, e não resultem em aumentos da produtividade. A este respeito, os resultados do que foi feito no Portugal 2020 não serão muito animadores.
Contudo, desconfio de políticas com contornos excessivamente discricionários, de “escolha de vencedores”, concentrando os apoios num número limitado de projetos de grande dimensão, em setores definidos a priori como estratégicos.
Escolher quais os setores do futuro, nos quais concentrar os recursos, é um exercício perigoso. Um pouco por todo o mundo, vimos já grandes apostas industriais, marcadas pelo voluntarismo dos decisores políticos, resultar em desperdício de dinheiros públicos.
Quando me perguntam quais os setores “de futuro”, com maior potencial de crescimento, respondo que não sei e que espero que nenhum governo tenha a veleidade de os definir a priori. Nos gabinetes ministeriais ou das universidades, não existem bolas de cristal que permitam antever os tais supostos setores de futuro.
Não são os setores, em si, que se classificam como muito ou pouco competitivos, ou com maior ou menor potencial, mas as empresas que os integram. Como o afirmou Michael Porter, o que determina a capacidade competitiva de um país não é tanto o que produz, mas o quão sofisticado e produtivo é esse país a fazer o que faz. De facto, “já não há indústrias de baixa tecnologia, apenas empresas de baixa tecnologia”.
Relatório Porter
Já tivemos, em Portugal, várias experiências de escolhas de setores no quadro da política industrial. Há 40 anos, tivemos o Relatório Porter, que identificou um conjunto de clusters, com base, fundamentalmente, nas vantagens competitivas de que Portugal dispunha. Com este relatório foi rejeitada a dicotomia entre setores ditos tradicionais e novas tecnologias.
Embora nunca tenha sido verdadeiramente vertido numa política coerente, as dinâmicas que este relatório inspirou permitiram melhorias evidentes nos setores tradicionais.
Ficámos, no entanto, aquém do que o título do relatório prometia: construir as vantagens competitivas de Portugal, talvez por partir de uma visão demasiadamente estática, certamente também por ter sido descurada a aposta nas cinco áreas de intervenção transversal que foram identificadas: a educação, o financiamento, a gestão florestal, a capacidade de gestão, a ciência e tecnologia.
Ficou, como legado, o reconhecimento da importância da colaboração entre empresas, associações empresariais, centros tecnológicos e instituições de ensino superior, na construção de clusters. Anos mais tarde, os clusters que foram reconhecidos pelo QREN (numa lógica diversa, mais baseada na iniciativa dos agentes económicos) eram já mais e diversos.
Mais recentemente, no documento do Prof. Costa Silva para o Plano de Recuperação Económica de Portugal, voltámos a ver sinais de algum dirigismo com a definição, como eixo estratégico, da “reindustrialização do país com os clusters dos recursos minerais estratégicos, energias renováveis, hidrogénio, bioeconomia sustentável e o clusterdo mar”.
Quando ouço falar, agora, em concentrar recursos para transformar a economia com mais dinheiro para menos setores, pergunto-me sobre a solidez dos critérios que estarão na base da escolha desses setores. Estaremos condenados a opções estratégicas e prioridades que mudam sempre que muda o ministro?