ANTÓNIO SARAIVA

VERDADES E MITOS SOBRE INFLAÇÃO E SALÁRIOS

Os efeitos da inflação foram, ao longo do ano passado, bem visíveis na erosão do poder de compra dos consumidores. Afetaram, também, de forma bem direta, as margens das empresas, uma vez que os aumentos dos custos não foram repercutidos plenamente nos preços.

Os últimos indicadores permitem-nos antecipar que o pior já terá passado: as cotações internacionais do petróleo, gás natural e diversas matérias-primas retrocederam, os preços na produção industrial caíram, em cadeia, pelo sexto mês consecutivo, e a taxa de inflação está a recuar, lenta, mas consistentemente, depois do máximo de outubro.

Contudo, persiste alguma resistência à baixa na designada inflação subjacente, que exclui as suas componentes mais voláteis. Tudo indica que a sua diminuição será gradual. O ritmo a que se processará depende da força e abrangência das pressões existentes, nomeadamente as que têm origem na recuperação, por um lado, dos salários dos trabalhadores e, por outro lado, das margens das empresas.

Compreendem-se, assim, os alertas no sentido da contenção, para que os aumentos dos salários e das margens de lucro das empresas não gerem efeitos de segunda ordem sobre os preços, tornando mais persistentes as pressões inflacionistas.

Tudo isto, num contexto em que, tanto as empresas como as famílias estão a ser pressionadas pelo aumento dos custos financeiros, decorrentes do aumento das taxas de juro.

Tudo isto, também, num contexto de perda de termos de troca (não esqueçamos que o choque que fez disparar os preços tem origem externa), o que implica uma perda de rendimento real que deve ser partilhada.

Dados objetivos

Temos já dados objetivos que mostram como é que, em 2022, se processou esta partilha. Estes dados desmentem que esteja a ocorrer, como muitos fazem crer, uma deterioração da parte dos salários em benefício dos rendimentos de capital. Por outras palavras, não é verdade que as subidas de preço estejam a fazer aumentar os lucros das empresas à custa da perda do poder de compra dos trabalhadores.

Vejamos, então, os números recentemente revelados pelo Eurostat: em Portugal, o peso das remunerações do trabalho no PIB reduziu-se, de facto – de 47,9%, em 2021, para 47,1%, em 2022 – mas continua alinhado com a média europeia – 47,0%.

Por outro lado, o peso do excedente bruto de exploração (que engloba lucros, juros, rendas e amortizações), ou seja,o peso dos outros rendimentos gerados pela produção, também diminuiu – de 39,7%, em 2021, para 39,0%, o valor mais baixo desde, pelo menos, 1995. Na média europeia, este rácio subiu para 41,9%.

Como se compreende que, simultaneamente, os dois rácios – dos rendimentos brutos do trabalho e do capital (antes da incidência de impostos diretos e contribuições) – tenham diminuído? A resposta está numa terceira parcela: os impostos indiretos (líquidos de subsídios), cujo peso no PIB aumentou de 12,3% para 13,9% (na média europeia foi, em 2022, de 11,2%).

A questão salarial

É importante, também, ter em conta que não são só as empresas privadas que distribuem salários. Os salários do setor público também influenciam, naturalmente, o peso das remunerações do trabalho no PIB. Os dados do INE mostram-nos que, entre o 4.º trimestre de 2022 e o mesmo período de 2021, a remuneração bruta mensal média por trabalhador aumentou 5,4% no setor privado e 2,0% no setor público.

Concluo, portanto, que, em Portugal, a inflação está a penalizar, praticamente na mesma proporção, trabalhadores e empresas, enquanto beneficia as finanças públicas.

Não é apenas pelo seu impacto na inflação que se justifica prudência no ritmo da recuperação dos salários. Como sempre tenho afirmado, só aumentando o valor dos bens e serviços que produzimos é que os salários poderão crescer de forma sustentável, sem prejudicar a competitividade das empresas e o seu futuro.

As empresas portuguesas não vivem isoladas dos mercados globais, por isso, a valorização dos salários não pode ser desligada da evolução observada entre os nossos principais parceiros e concorrentes, em particular os que partilham a mesma moeda. A convergência dos salários tem de andar a par da convergência da produtividade. Interessa, por isso, ter em conta os aumentos salariais na área do euro, bem como o diferencial na evolução da produtividade entre Portugal e a média da área do euro.

Também neste domínio temos dados objetivos, fornecidos pelo Eurostat, sintetizados no indicador dos custos laborais por unidade produzida. Em 2022, é certo, aumentaram mais na área do euro (3,3%) do que em Portugal (1,4%). Mas se virmos a evolução nos últimos 3 anos, vemos que em Portugal aumentaram 10,9%, contra 8,0% na área do euro. E se recuarmos a 2015, temos aumentos de 21,3% em Portugal, contra 13,9% na área do euro.

Onde está, então, a divergência com a Europa na distribuição dos rendimentos? Discutamos, pois, a questão salarial, mas façamo-lo de forma fundamentada, não com base em ideias feitas que não correspondem à realidade.

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