MANIFESTAÇÕES NO DESPORTO – (QUE) LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E OPINIÃO DOS ATLETAS? O crescendo da quantidade e ressonância de atos racistas a nível mundial, mas com epicentro nos Estados Unidos da América, tem motivado reações de cidadãos e instituições à escala global, repudiando veemente o que se vai repetindo, que já chegou a envolver mortes causadas por atos e omissões de forças policiais, no limite dos efeitos que pode ter uma discriminação negativa com base na cor/na raça. De entre o universo daqueles que, nos últimos meses, se têm manifestado publicamente, constam os praticantes desportivos. E têm-no feito não só em sede de entrevistas ou expressando a sua visão nas redes sociais, como também reagindo dentro das próprias infraestruturas desportivas, nomeadamente com gestos e mensagens veiculadas durante as cerimónias de pódio em que soa o hino e se iça a bandeira nacionais, ou inclusivamente boicotando a participação em alguns eventos desportivos como sinal público de protesto. Este enquadramento retomou a discussão da liberdade de expressão dos atletas, e seus possíveis limites. Regressou em força o debate em torno da famosa Regra 50 da Carta Olímpica, segundo a qual se veda aos atletas a manifestação ou expressão de qualquer tipo de propaganda política, religiosa ou racial, no âmbito das infraestruturas dos Jogos Olímpicos, sob pena de aplicação de sanções disciplinares. Precisamente sujeito a uma eminente sanção disciplinar da FIA (Federação Internacional do Automóvel) se encontra o piloto britânico Lewis Hamilton, que há dias, após vencer o Grande Prémio da Toscana, ostentou uma camisola onde se lia: “Arrest the cops who killed Breonna Taylor”. E mais disse o seguinte: ”Muita gente pensa que está a acontecer só nos EUA. Sim, lá há a brutalidade policial, mas há racismo sistémico em todo o mundo.” Cabe aqui perguntar: podem as organizações desportivas prever semelhantes normas e aplicar inerentes sanções disciplinares? Não se está a cercear a liberdade de expressão dos atletas? A questão não é fácil nem definitiva. Vejamos.
A proteção dos direitos humanos – É verdade que os praticantes desportivos são, antes de mais, cidadãos, aplicando-se-lhes, desde logo, o artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, segundo o qual “[t]odo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”. Nesse sentido, o que as organizações desportivas estão a fazer é restringir a liberdade de opinião e expressão dos atletas, violando um direito humano – e se é certo que a proteção dos direitos humanos visa proteger os indivíduos contra abusos dos Estados, cada vez mais, por força de vários instrumentos jurídicos de hard e soft law, se tem, indiretamente, construído a proteção relativa a abusos perpetrados por organizações desportivas. Também é verdade que não estamos perante um direito absoluto, sem restrições. Com efeito, conforme prescreve o artigo 10.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, “[o] exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”. Entendendo-se que na expressão “lei” cabem regras emanadas de organizações desportivas, percebe-se que têm de ser fundamentos muito relevantes aqueles que legitimam restrições ao direito humano em presença, nenhum dos quais conexos com o fenómeno desportivo. Neste prisma, do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dir-se-á que é difícil sustentar a validade das regras das organizações desportivas em apreço.
Especificidade e autonomia desportivas – Mas há o outro lado da moeda, decorrente desde logo da Magna Carta do Movimento Olímpico, a já referida Carta Olímpica. Aí se enquadra o Olimpismo ao serviço da Paz assim como se proclama a neutralidade política dos Jogos Olímpicos bem como a autonomia das organizações desportivas face aos Estados. Pretende-se que os eventos desportivos se mantenham nessa estrita dimensão, a desportiva, e não sirvam de palco a reivindicações políticas, clivagens ideológicas, disputas de credos, enfim… quer-se, na expressão de Johan Lindholm, evitar que os atletas “tragam a política para os estádios”. Ademais, não se pode negar também que os patrocinadores oficiais dos (mega) eventos desportivos, que são quem protege comercialmente esses eventos, muitas vezes não se querem associar a extremismos, a propaganda que possa ser intolerante, em contraponto com o universalismo e um internacionalismo harmonioso e pacífico. A isto acresce que na Carta Olímpica, mas também em instrumentos jurídicos supranacionais Estatais, se reconhece expressamente a especificidade do desporto e a autonomia (logo autorregulação) das organizações desportivas, na definição das regras das suas competições…
Contraponto entre perceções e realidade – Face a estas abordagens opostas, e aproveitando a atualidade do debate, é essencial uma maior clarificação conjunta. Ao Comité Olímpico Internacional, como autoridade suprema do Movimento Olímpico, cabe o papel essencial, e mesmo uma necessidade gritante, de demonstrar à opinião pública que a mesma entidade que proclama a defesa dos Direitos Humanos continua a ter razão quando também os restringe. Por sua vez – até para ajudar os tribunais – os Governos e as organizações internacionais estatais devem melhor expressar a sua visão sobre o sentido e alcance do reconhecimento da especificidade e da autonomia desportivas. Por sua vez, os atletas devem continuar a procurar unir a sua voz nos centros de decisão que já ocupam, e no quadro das entidades representativas dos seus interesses que foram criando à escala global. Concomitantemente, ouvir a sociedade civil também é fulcral, num mundo de contraponto entre perceções e realidades. Vamos a isso?