ALEXANDRE MIGUEL MESTRE 

DESPORTO, SAÚDE E FISCALIDADE .Bater a bota com a perdigotaDeixando de lado o IRC ou os Benefícios Fiscais, e identificando apenas o IVA e o IRS, constata-se que a nossa lei não fomenta, fiscalmente, a prática da atividade física e do desporto.   

 Em termos de IVA e IRS, temos os seguintes exemplos: (i) como regra, são devidos 23% de IVA para se aceder a uma infraestrutura desportiva; (ii) o IVA é devido também em 23% no caso dos serviços prestados por profissionais do exercício e saúde; (iii) em sede de IRS, não existe uma dedução automática (é necessária prescrição médica) das despesas com planeamento/intervenção com exercício físico. Como cidadão, advogado e alguém que exerceu funções governativas na área do Desporto, tenho pugnado, com e junto de várias pessoas e entidades, por uma mudança de paradigma fiscal, como forma de se fomentar, em Portugal, a prática da atividade física e do desporto, lutando contra números assustadores de sedentarismo, obesidade e doenças várias (tratadas num SNS sem meios suficientes…). Permitam-me neste artigo invocar, em específico, o enquadramento constitucional e legal que aponta para que a urgência e necessidade de um tratamento fiscal mais favorável não é uma opção ou prioridade do Estado, é um dever. 

 Binómio indissociável  

Desporto e Saúde são fenómenos muito próximos, formando um binómio indissociável, desde logo ao nível da Constituição da República Portuguesa (CRP), que enquadra o “direito à cultura física e ao desporto” (art. 79.º) e o “direito à proteção da saúde” (art. 64.º) no catálogo dos direitos fundamentais.  Quando se postula que o “direito à proteção da saúde é realizado pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular” (art. 64.º, n.º 2, alínea b), logo se evidencia que a saúde se prossegue, em particular, através da promoção do desporto, ou seja, e nas palavras de Maria João Estorninho e de Tiago Macieirinha (2014), o desporto é um “instrumento” das políticas de saúde. De acordo com João Carlos Loureiro (2006), dir-se-á que o desporto constitui uma “medida positiva para a conservação e promoção do bem saúde”, uma “pré-condição para a saúde”, ou um fator ou domínio que concorre para a proteção e promoção da saúde – visão em sintonia com Paulo Cardoso de Moura (1999) que, glosando o artigo 64.º, n.º 2, alínea b) da CRP, refere que a cultura física e o desporto “não são [aqui] um direito em si mesmo, são um meio para prosseguir outros direitos”, in casu o direito à saúde. 

 Instrumentos jurídicos internacionais  

Esta visão é também a que se encontra em instrumentos jurídicos internacionais, ainda que não vinculativos. Desde logo a Carta Europeia do Desporto (Conselho da Europa) apela, no seu artigo 6.º, n.º 1, à necessidade de se desenvolver a participação desportiva, salientando que “Convém promover a prática do desporto junto de toda a população (…) para fins de (…) saúde (…)”.  Por outro lado, no quadro do mutável e evolutivo conceito de saúde, a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1998 afirmou que a promoção da saúde visa “alcançar um completo bem estar-físico, mental e social”, sendo que “(…) não é da exclusiva responsabilidade do setor da saúde, vai para além dos estilos de vida e visa o bem-estar”. Noutra definição, já de 1946, a OMS define saúde como “(…) um estado de bem-estar físico, mental ou social completo e não a mera  doença ou enfermidade.” Note-se aqui, em especial, a convergência dos propósitos da saúde com os do desporto, e a assunção expressa de que a promoção da saúde não se materializa somente de forma direta através do setor da Saúde, carecendo de outros instrumentos, nos quais, naturalmente, está o desporto, está o exercício físico, que, nas palavras de Francisco George (2019), é “componente indispensável na perspetiva da prevenção das doenças e da conservação da saúde (…) [sendo que a] promoção do exercício físico pode ser equiparada a um autêntico medicamento, como muito justamente anunciam os primeiros organizadores da campanha nos Estados Unidos designada Exercise is Medicine ”. 

 Promoção da saúde 

Em coerência, e tal como no transcrito n.º 2 do artigo 79.º da CRP, de onde resulta um modelo colaborativo entre os entes públicos e privados na prossecução do direito ao desporto, a Base VI da (ainda vigente) Lei de Bases da Saúde, sob epígrafe “Responsabilidade do Estado”, no n.º 3, remete-nos novamente para o desporto enquanto instrumento das políticas de saúde, in casu no que tange à articulação entre as diferentes tutelas governamentais e no seio da Administração Pública: “Todos os departamentos, especialmente os que atuam nas áreas específicas da segurança e bem-estar social, da educação, do emprego, do desporto, do ambiente, da economia, do sistema fiscal, da habitação e do urbanismo, devem ser envolvidos na promoção da saúde”. Saúde é, portanto, como bem referem Isabel Loureiro e Natércia Miranda (2018), um conceito que podemos centrar “(…) no aumento das capacidades e resistências dos indivíduos e dos grupos da população para lidar de forma positiva com os fatores adversos da vida”. 

 Um dever do Estado 

Temos, pois, um enquadramento jurídico claro que nos conduz a concluir que (também) se alcança a promoção da saúde através do desporto. Nesse sentido, é imperioso que a prossecução das políticas públicas do desporto e da saúde se complementem e harmonizem. Mais: não se trata de uma opção do legislador, mas sim de uma obrigação, de um dever do Estado, de concretização de normas constitucionais, sob pena de este falhar, por omissão. O Estado tem o dever de promover as condições económicas, sociais e culturais necessárias a uma vida saudável; como salienta Rui Medeiros (2017), exige-se “(…) do Estado prestador a adoção de condutas ativas no sentido da sua promoção, da prevenção e do combate à doença”. É verdade que o Estado nos últimos anos tem atuado, devendo reconhecer-se que a “Promoção da Atividade Física” é uma das áreas nas quais a Direção-Geral de Saúde vem desenvolvendo “programas de saúde”, no âmbito do “Plano Nacional de Saúde” e realçar o facto de estarem a ser promovidos “projetos-piloto e o seu acompanhamento e avaliação, com o objetivo de reforçar a integração da promoção da atividade física nos cuidados de saúde no SNS”. Enfatize-se também o Plano Nacional de Saúde – Revisão e Extensão a 2020, em que uma das propostas é “o reforço de estratégias intersectoriais que promovam a saúde, através da minimização de fatores de risco”, entre os quais a “ausência de atividade física”, para além da Estratégia Nacional para a Promoção da Atividade Física, da Saúde e do Bem-Estar (ENPAF 2016-2025). Tudo parece, portanto, convergir num propósito comum, mas que sempre permanecerá incompleto e, acima de tudo, e salvo melhor opinião, ilegal e inconstitucional, se não se traduzir também num regime fiscal adequado: para os utentes, para os profissionais e para proprietários/quem explora as infraestruturas desportivas. Haja, pois, coragem, coerência e ação. Para que, como se diz na gíria popular, “bata a bota com a perdigota”.