ALEXANDRE MESTRE

FEDERAÇÕES DESPORTIVAS – Simplex Desporto, Já! Um Exemplo. Ao dia de hoje, de acordo com a lista disponibilizada no sítio internet do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) existem em Portugal 58 federações desportivas. Nos termos da lei, para se ser federação desportiva é necessário que o Estado lhe conceda o estatuto de utilidade pública desportiva (EUPD). Através desse instrumento, o Estado delega numa associação de direito privado poderes regulamentares, disciplinares e outros, ou seja, poderes de natureza pública que passam a ser exercidos por um ente privado. E, claro está, são também transferidas verbas, dinheiros públicos, tituladas por contratos-programa, para que a federação em causa desenvolva o desporto (da base ao alto rendimento), organize e participe em eventos, invista em infraestruturas desportivas, etc. Assim, no quadro da sua missão, constitucionalmente prevista, de “promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto”, o Estado, também na linha da Constituição, ensaia um modelo colaborativo com as “associações”. 

A atribuição do EUPD – Detentora do EUPD, uma federação desportiva, em exclusivo, promove, regulamenta e dirige, a nível nacional, a prática de uma modalidade desportiva ou de um conjunto de modalidades afins ou associadas. Por exemplo, a Federação Portuguesa de Futebol, por força do EUPD, é a única (princípio da unicidade federativa) a reger em Portugal o futebol, o futebol de sete, o futsal e o futebol de praia. Não há, nem pode haver em paralelo – por força de legislação específica de 2015 uma Federação Nacional de Futebol ou uma Federação de Futebol de Portugal. Detentora do EUPD, uma federação desportiva representa perante a Administração Pública os interesses dos seus associados. Por exemplo, quando o IPDJ recebe a Federação de Andebol de Portugal, está a receber a entidade oficial que “fala” em nome de inúmeros agentes desportivos (atletas, treinadores, clubes, árbitros) que, em moldes associativos, se dedicam à modalidade. É ainda o EUPD que confere o direito a uma federação desportiva de “representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins ou associadas, junto das organizações desportivas internacionais”. Aliás, a filiação numa federação desportiva internacional, reconhecida pelo Comité Olímpico Internacional, é requisito fundamental para uma entidade que requeira ao Estado a atribuição do EUPD. Mais marcante ainda é o facto de ser o EUPD que confere a uma federação desportiva a tarefa de “assegurar a participação competitiva das seleções nacionais”, missão que a lei qualifica como de “interesse público”. Assim sendo, oficialmente, o hino toca, a bandeira iça e o povo vibra apenas e só quando há uma verdadeira representação internacional, e essa só se faz sob a égide de uma federação com EUPD. 

O papel de outros entes – E poderia continuar com as vantagens e os efeitos positivos para o desporto nacional da existência deste EUPD. Tudo em prol de uma sociedade mais ativa, mais saudável. É evidente que nem tudo tem que passar pelas federações desportivas. Veja-se o papel de outros entes, como, por exemplo, Associações Promotoras de Desporto, também beneficiárias de contratos-programa, assim como do tecido empresarial, de que os ginásios são exemplo paradigmático. Todos, em colaboração, e bem, incutem nos cidadãos hábitos fundamentais de atividade física e desporto – e como é óbvio não se deve dizer que tem mais valor o desporto competitivo, regulamentado e institucionalizado, do que a prática desportiva informal, formativa, de baseMas, naturalmente, o EUPD é aquele que, no limite, diferencia os jogos entre amigos, as disputas “a feijões”, dos jogos cuja homologação dos resultados tem relevantes efeitos oficiais, nacional e internacionalmente. Nós vemos a Liga dos Campões de Futebol e gritamos que somos Campeões da Europa de Futebol porque os nossos clubes são filiados na Federação Portuguesa de Futebol e porque esta é membro da FIFA. 

Um processo moroso – Aqui chegados, feito este necessário enquadramento, vamos direto ao que gostaria de enfocar neste artigo: o Regime Jurídico das Federações Desportivas exige que, para se obter o EUPD, a associação em causa já seja titular do “estatuto de simples utilidade pública”, um outro estatuto que também associa a entidade em causa à função administrativa do EstadoSucede que a declaração de utilidade púbica está sujeita a um procedimento administrativo próprio, da competência do primeiro-ministro, o qual – diz-nos a experiência, mostra-nos a realidade dos factos – pode durar anos. Ora porque são muitos os pedidos em simultâneo associações, fundações, IPSS, cooperativas … –, ora por razões burocráticas, conexas com a instrução e tramitação dos processos, ora por outros motivos que hoje, aqui, prefiro não dissecar. Foquemo-nos hoje no que é mais objetivo, movidos, tão-só, pela crítica ao modelo: em regra estamos perante um processo longo, muitas vezes bastante moroso. A esses anos acrescem outros três anos: com efeito, uma associação só pode ser declarada de utilidade pública “ao fim de três anos de efetivo e relevante funcionamento. 

Exemplo prático – Vejamos então um exemplo prático: introduz-se em Portugal uma nova modalidade, que nos chega por influência do mundo globalizado. O sucesso e adesão de praticantes é enorme, ultrapassando mesmo os 500, número mínimo que se exige para as federações desportivas. Multiplicam-se provas, nacionais e internacionais. Ambiciona-se ter mais meios, humanos, infraestruturais e financeiros para potenciar a modalidade. Quer-se obter o EUPD. Mas tem que se esperar pelo menos três anos. E depois segue-se um procedimento administrativo que pode somar outros tantos anos. Só a partir daí se pode requerer a concessão do EUPD, que também segue tramitação própria, a qual, ainda que menos demorada, durará, pelo menos, vários meses, pendente que fica da frequência com que o membro do Governo convoca o Conselho Nacional do Desporto.  Como é bom de ver, instala-se o desânimo, perde-se a motivação daqueles que entusiasticamente quiseram trazer para Portugal uma nova modalidade desportiva. Atrasam-se projetos. Perdem-se pessoas qualificadas. Afastam-se praticantes que ambicionavam o profissionalismo, o alto rendimento, as seleções nacionais. Mitiga-se a já difícil atração de patrocinadores (quem quer patrocinar um atleta que não se pode qualificar de campeão nacional?!). E por aí fora. Só não desistem mais porque lhes corre no sangue o espírito do desportista, que só desiste se não tiver mesmo outra opção. 

Simplex no desporto – Pergunto: para o caso das federações desportivas, valerá a pena este duplo crivo? Será que a análise do “interesse geral” de uma associação com fins desportivos, feita para a concessão da simples utilidade pública, não é passível de ser aferida exclusivamente em sede do procedimento de concessão do EUPD? O que se ganha verdadeiramente em protelar vários anos o acesso ao EUPD? Se o objetivo é, por uma lógica economicista mais do que desportiva, encurtar o número de potenciais federações desportivas, como há anos se chegou a sugerir, é esta a via? Não estará na hora de se fazer um verdadeiro Simplex no desporto, nomeadamente no processo de concessão do EUPD?! Celebrámos este ano 46 anos do 25 de Abril de 1974, lembrámos a Constituição de 1976. Será então coerente, por via legal e administrativa, criar barreiras ao livre associativismo? Fará sentido, à luz da nossa Lei Fundamental, que fiquem pelo caminho meios e pessoas que ajudariam o Estado a cumprir o seu dever constitucional de garantir o direito ao desporto de todos e para todos?!