ALEXANDRE MESTRE

DESPORTO E RELIGIÃO – Por um Comité Olímpico… do Vaticano – No final de Dezembro de 2019, o ministro dos Desportos do Vaticano, monsenhor Sánchez de Toca, anunciou o objetivo de criação de um Comité Olímpico do Vaticano, com o foco já nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. E justificou a ideia: “uma voz fora do mundo do desporto, como a Igreja, pode ajudar a reposicionar os valores fundamentais”. Devo dizer que fiquei francamente entusiasmado com esta ideia e que me recordei do que pude defender, em 2012, no Átrio dos Gentios, em Braga, quanto à indissociável ligação entre o desporto e a religião, entre os valores da Igreja e os valores do Olimpismo, num quadro de Universalismo, Humanismo e Paz de que os Jogos Olímpicos (muito mais do que o maior evento desportivo à escala global) são paradigma-mor. Por isso, uma voz “de fora”, que na essência do que proclama já é “de dentro”, afigura-se como uma aliança fundamental, designadamente através da participação nuns Jogos Olímpicos, sob as “vestes” de um Comité Olímpico do mais pequeno Estado do mundo. Vejamos então porque se tocam tanto desporto, religião, Olimpismo e valores, e como juntos certamente se maximizam. A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual. Segundo a narrativa bíblica, “é corpo humano precisamente por ser animado pela alma espiritual”. Daí que, de acordo com João Paulo II, não se pode dizer que a pessoa humana “tem corpo”, mas sim que “é corpo”. Por isso também o Concílio do Vaticano, em 1966, preconizou que “não é lícito ao homem menosprezar a vida do corpo”. Ora é nesse sentido, do não menosprezo da vida do corpo, que surge o desporto, concebido como o uso do corpo, em que, para ser puro, deve unir corpo e espírito. O corpo surge, pois, não apenas como um instrumento de ação, mas sim e sobretudo como uma parte da pessoa humana, sabendo-se que esta é o centro centrípeto e centrífugo do desporto. Inerente à pessoa humana, necessidade da pessoa humana, fator essencial para o seu desenvolvimento físico e psíquico, o desporto – tal como já o expressámos diversas vezes – deveria ser reconhecido, pelos Estados, no Direito Internacional, como um direito humano. Mas esse reconhecimento, felizmente, já consta da Carta Olímpica, Magna Carta do Olimpismo, que alude ainda à dignidade da pessoa humana. Também por aí, Olimpismo e Jogos Olímpicos se aproximam da mensagem da Igreja. 

A dimensão dos valores – Note-se que o elo em apreço vem mesmo das origens dos Jogos Olímpicos. Na Antiga Grécia, os Jogos Olímpicos foram criados como uma festa lúdico-religiosa dedicada aos deuses, na expressão máxima de Zeus, deus dos deuses. E na Modernidade, Pierre de Coubertin reinventou os Jogos Olímpicos afirmando que “o desporto é uma religião com Igreja, dogmas e culto, mas principalmente com o sentimento religioso” – surge mesmo, a dado passo, a noção do religio athletae, em que o atleta é uma “espécie de padre e servidor de uma religião com poder de músculo”. Não se estranha, pois, que na sua Ode Olímpica, Coubertin tenha considerado o desporto como um “prazer dos deuses”. Mas é, de facto, a dimensão dos valores, a que mais nos importa aqui salientar. Como referiu o Papa Bento XVI, “o desporto praticado com paixão e atento sentido ético, especialmente para a juventude, torna-se ginásio de espírito de compaixão sadio e de aperfeiçoamento físico, escola de formação para os valores humanos e espirituais, meio privilegiado de crescimento pessoal e de contacto com a sociedade”. Efetivamente, na unidade de corpo e alma, amor comum que gera uma comunidade, o desporto é um vetor de aprendizagem das regras e da vida coletiva, que facilita a aquisição de valores como o respeito pelos outros; amizade; magnanimidade; fraternidade; entreajuda; partilha; solidariedade; altruísmo; generosidade; doação; confronto leal. Vivido com vontade, tenacidade, sensibilidade e fito de valorização, o desporto ensina o agonismo, a disciplina, o comprometimento, a dedicação, a abnegação, o culto do sentido de esforço, o gosto pela luta, com justiça, com equidade. Desporto é prudência, é autenticidade, é coragem, é perseverança. Por outro lado, e segundo Paulo VI – que reconheceu no Comité Olímpico Internacional um interlocutor privilegiado da Santa Sé – o desporto propicia a paz, uma comunhão espiritual entre pessoas de diferentes partes da nossa aldeia global (tal e qual os Jogos Olímpicos…). Mais, o mesmo Papa salientou o seguinte: “O desporto simboliza a vida: a vida é um esforço, a vida é um risco, a vida é uma corrida, a vida é uma esperança para a meta final, uma meta que transcende o palco da experiência comum e que a alma entrevê e a religião nos apresenta”. 

Intervenção fundamental da Igreja – Só que há também uma dimensão negativa do desporto, perigosa mesmo, para a qual nos alertou João Paulo II: o desporto “pode também defraudar a sua autêntica finalidade se der espaço a outros interesses, que ignoram a centralidade da pessoa humana”. E é para esse lado negro do desporto, acentuado na vida hodierna, que, penso, a Igreja, de mão dada com os valores comuns que a ligam ao desporto, pode ter uma intervenção fundamental, agindo em várias frentes: (i) Condenando atentados à ética desportiva, como dopagem; violência associada ao desporto; racismo; xenofobia, discriminações sociais; abusos vários, e, claro, corrupção (já na Bíblia se lê que numa corrida apenas um corredor recebe o prémio, e se faz alusão a uma “coroa corruptível”…); (ii) Mitigando os excessos da comercialização; da idolatria dos atletas tidos como “Deuses nos Estádios” ou “Heróis Imortais” (lê-se na Bíblia: “Que acordo tem o Templo de Deus com os ídolos?”); do fanatismo; (iii) Condenando o materialismo; a sobrecarga intensiva de treino; o “ganhar a todo o custo”, até à custa da integridade física do adversário (visto mais como um inimigo…). 

Este é o Tempo. E se os referidos Papas, tais como também Pio XII, muito fizeram para, na teoria e na prática, levar o desporto e seus valores aos cidadãos, o Papa Francisco tem perfil singular para reforçar esse caminho. Pela sua paixão pelo desporto, como praticante e espetador. E pelo que é como Homem e Sumo Pontífice. Venha então, rápido, no caminho, o futuro Comité Olímpico do Vaticano.