ALEXANDRE MESTRE

TRÉGUA OLÍMPICA – EXEMPLO PARA AS DIVISÕES E GUERRAS ATUAIS

Segundo a mitologia, em 884 a.C., Ífito, rei dos Eleus, depois de consultar o oráculo de Delfos, aconselhado pela Pitonisa a estabelecer a paz com os povos vizinhos, celebrou, em Olímpia, com Cleóstenes, rei de Pisa, e com Licurgo, rei de Esparta (famoso legislador), um tratado histórico pan-helénico, que instituiu a Ekecheira, a Trégua Olímpica – também conhecida por Trégua Sagrada, Trégua de Deus ou Trégua do Desporto Clássico. Um Tratado que vigorou durante 1200 anos!

A atestar a importância do Tratado, está o facto de, em tempo de regras não escritas, ter sido inscrito num disco, de ouro e marfim, e de ter sido depositado no sagrado Templo de Hera, no Altis.  Numa inscrição arcaica, circular e concêntrica, lia-se o seguinte: “Olímpia é um lugar sagrado; quem ousar pisar este solo com o seu exército será vituperado como herege. Tão iníquo é também aquele que não vingue um crime, estando na sua mão poder fazê-lo.

Assim, em cada Olimpíada, no período antecedente aos Jogos Olímpicos, tudo se iniciava com uma proclamação pública por todas as cidades gregas feita pelos espondóforos, os arautos sagrados, “mensageiros da paz” escolhidos pela aristocracia grega. Não há, todavia, consenso nas fontes quanto ao período da Trégua, havendo quem avance com um período de um, de três ou mesmo de 10 meses antes do início (aumentando à medida que os Jogos ganharam importância e começaram a chegar mais praticantes e espetadores, vindos de lugares cada vez mais longínquos), e também existindo registos divergentes quanto ao fim da Trégua: para alguns coincidia com o encerramento dos Jogos, para outros ultrapassava essa data.

Para alguns este Tratado acordava a paz, para outros significava apenas um armistício, no sentido de uma abstenção do recurso ao uso de armas durante um determinado período, um cessar da guerra temporário – estaríamos perante uma trégua de armas, uma inviolabilidade publicamente acordada, reconhecida e observada de pessoas, territórios e objetos, sem beligerância. Paradoxalmente, a paz acontecia na pendência de um evento desportivo, sabendo-se que o desporto era, então, um poderoso instrumento de preparação militar.

Na prática, a Trégua consistia numa proclamação formal da inviolabilidade das regiões nas quais de desenrolavam as festas religiosas e as competições desportivas: ao declarar-se como neutro, inviolável e sagrado o território de Élis, obrigava-se a que as tropas que ali entrassem tivessem que depor as armas, só as podendo reaver quando abandonassem o local, qual convenções de capitulação em que se fazia apelo à boa-fé dos adversários. Assim se viabilizava, portanto, que todos quantos se dirigissem a Olímpia – atletas, treinadores, espectadores, mercadores, peregrinos em geral – beneficiassem de liberdade de movimentos e de imunidade, mesmo quando tivessem de atravessar territórios de cidades hostis ou que até então estivessem em guerra com as suas cidades natais.

A revisitação da Trégua Olímpica nos Jogos Olímpicos da Era Moderna

De tal forma a Trégua Olímpica demonstrou ser um eficaz instrumento jurídico de viabilização de condições de realização dos Jogos da Antiguidade, almejando uma paz divina, que o barão Pierre de Coubertin, em 1935, a recuperou para os Jogos da Era Moderna, conferindo-lhe um espetro mais amplo no quadro do seu projeto de paz pelo desporto. Depois de invocada nos Jogos de 1952 e 1956, o apelo maior para os Estados respeitarem a Trégua Olímpica data de 1992, pela voz de Juan Antonio Samaranch, por ocasião dos Jogos de Barcelona. E desde a Declaração do Milénio, de 2000, que a ONU evoca a Trégua, e em cada dois anos, nas vésperas de Jogos de Inverno e de Verão, a sua assembleia-geral aprova, quase sempre por unanimidade, resoluções que apelam ao respeito pela Trégua Olímpica. Para além de António Guterres, também o Papa Francisco e Macron verbalizaram recentemente tal pedido, exortando à suspensão de conflitos bélicos por ocasião dos Jogos de Paris.

É verdade que a Trégua Olímpica já foi violada várias vezes, a última das quais pela Rússia, mas vinque-se que há casos práticos, tangíveis, do sucesso da Trégua Olímpica. Por exemplo, em 1994, fez parar o conflito nos Balcãs, viabilizando ajuda humanitária, e o conflito na Geórgia foi suspenso, sendo que na Bósnia 10 mil crianças puderam ser vacinadas. Em 1998, os EUA adiaram a ação militar. Em 2000 e 2004 atletas das duas Coreias marcharam juntos na Cerimónia de Abertura dos Jogos. Em todos os Jogos, na Aldeia Olímpica coabitam diversos atletas cujos países se dividem em guerras e conflitos.

A Trégua Olímpica como exemplo a replicar nos cenários bélicos atuais

A guerra na Ucrânia e o conflito entre o Hamas e Israel, em que em certas alturas se estuda pelo menos um cessar-fogo, são dois cenários bélicos atuais em que o sentido e o alcance da Trégua Olímpica poderiam e deveriam ser vividos: ainda que não se atinja por si a a paz, uma cessão temporária das hostilidades é um momento de cultura de paz, que pode, através da diplomacia, abrir rumo para o diálogo multicultural, a unidade, o conhecimento recíproco, a cooperação, a tolerância, a negociação, a reconciliação. Trata-se de um singelo exemplo prático, a partir do desporto, de idealização e construção da paz, que não deve ser negligenciado, antes viva e constantemente evocado.

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