ALEXANDRE MESTRE

DO “CASO SUPERLIGA” À CIDADANIA E IDENTIDADE EUROPEIAS

No passado dia 21 de dezembro o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) prolatou três acórdãos com projeção mundial. Em comum estava o desporto: as decisões tomadas pelos juízes do Luxemburgo prendiam-se com casos que envolviam organizações desportivas, regras desportivas, praticantes desportivos. E, claro, milhões.

No processo mais falado, conhecido como o “Caso Superliga”, não faltou quem invocasse estar em causa um verdadeiro “terramoto” no desporto europeu, senão mundial, anunciando que chegou aí “um novo Acórdão Bosman”. E os cidadãos, os media de toda a União Europeia (UE), de todo o mundo, falaram das decisões, do Tribunal, do Direito da UE, e o impacte no futebol em concreto, à escala global.

O propósito deste artigo não é analisar os fundamentos jurídicos das decisões e respetivo impacte. Não será este o espaço. Gostava, caro leitor, de partilhar consigo uma constatação óbvia, mas que nos deve interpelar para agir em conformidade, e com frutos, em tempos em que subsiste o famoso “défice democrático”, o afastamento dos cidadãos da política e do processo da integração europeia. E essa constatação prende-se com o papel e a força que o desporto inegavelmente tem na consciencialização de que para além de cidadãos nacionais somos cidadãos da UE e de que o Direito da UE também nos vincula, primando mesmo sobre o direito nacional, dele decorrendo múltiplos direitos e obrigações, podendo invocá-lo, em particular, perante autoridades administrativas ou tribunais.

Acórdão Bosman

Num processo de construção europeia, foi acima de tudo com o tal Acórdão Bosman, num outro mês de dezembro, em 1995, que essa consciencialização terá ganho (mais) força. Mesmo que, por exemplo, se enfatize o impacte diário da (relevantíssima) Política Agrícola Comum nas nossas vidas, foi com o Acórdão Bosman em particular que os cidadãos da UE perceberam, como nunca, que à sua cidadania nacional acrescia uma cidadania europeia, que existia o (então denominado) Direito Comunitário, que existem, por exemplo, regras a prever a livre circulação de trabalhadores no espaço da UE e o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade entre cidadãos da UE. Acresce, a montante, algo que também se deu com este aresto: muitos cidadãos que desconheciam a UE ou que à mesma eram indiferentes perceberam a existência ou a força do projeto europeu. E com isso se interessaram mais pelo mapa europeu.

Socorro-me a este propósito de uma obra de Michael Bruter, de 2005, intitulada Citizens of Europe? The Emergence of a Mass European Identity. Aí podemos comprovar, com dados empíricos, o que acima referi. Há um antes e um depois do Acórdão Bosman na perceção dos cidadãos europeus de que existe um projeto europeu ou, no caso dos que já o conheciam, um maior interesse pelo mesmo, uma maior compreensão do mesmo. E com isso, a par do reforço da cidadania europeia, também se foi solidificando gradualmente a identidade europeia. A dado passo, o autor refere-se a um questionário onde se procura aferir “How ‘European’ are Europeans”, tendo o desporto servido para esse fim – ficou demonstrada a assunção de que os cidadãos europeus se sentem mais próximos dos demais cidadãos europeus quando há jogos/competições desportivas que opõem uns aos outros, e mesmo em modalidades pouco populares ou mediáticas.

Futebol europeu

Ademais, não oferece dúvidas que muitos cidadãos, em particular os jovens, conhecem o nome e a localização geográfica de outros países europeus por força dos diferentes clubes europeus e das seleções nacionais desses países… Não é à toa também que, por exemplo, no futebol, sob a égide da UEFA, existe uma Liga Europa, e que os clubes lutam para nela participar exprimindo “tudo faremos para ir à Europa”. Mais: paradoxalmente ou talvez não, o mesmo desporto que fomenta apegos a lógicas territoriais e a rivalidades entre próximos é aquele que também cria o cenário de um cidadão ter um clube do seu país de que é adepto e simultaneamente um clube de outro país, nomeadamente da Europa.

Na esteira de William Gasparini, poder-se-á dizer que o Acórdão Bosman é um exemplo de como o desporto ajuda à “Europeização ‘formal’”, enquanto via de imposição de regras do Direito da UE aos Estados-membros e às organizações desportivas, a par da dita “Europeização ‘informal’”, vista como uma série de recomendações e de discursos europeizados que tendem a impor a ideia de uma identidade ou de uma dimensão europeia do desporto.

Ora, em dezembro de 2023, mesmo que – como é o meu caso – possamos discordar do essencial do sentido e alcance das decisões tomadas pelo TJUE, parece indubitável e consensual que há um mérito no impacte que as mesmas tiveram com a sua projeção: o reforço da consciencialização de que também somos cidadãos da UE e de que no nosso quotidiano prima o Direito da UE. Esta perceção reforça, feliz e incomensuravelmente, duas realidades: a cidadania europeia e a identidade europeia.

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