O PUZZLE NECESSÁRIO PARA UM NOVO DESPORTO: LEGISLAÇÃO, FISCALIZAÇÃO E OUTRO MODELO DE FINANCIAMENTO
O Governo anunciou a sua intenção de rever a Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (LBAFD), a Lei 5/2007, de 16 de janeiro. Não se conhecem muitas explicações públicas para tal desígnio, mas adivinha-se que, quanto mais não seja pela longevidade da lei vigente, haja na mente governativa pelo menos uma lógica de atualização.
Têm-se sucedido, de Norte a Sul do país, sessões de debate em torno deste processo de revisão, sem qualquer guião/exposição de motivos por parte do Governo a orientar tais momentos, e tanto quanto se julga saber, por vezes mais centrados nos diplomas de desenvolvimento das bases do que propriamente nas bases. Mas só o facto de estes temas se estarem a debater por quem de direito e de se querer avançar para rumos mais modernos já é bastante salutar.
Num evento promovido pelo Panathlon Clube de Lisboa, no passado dia 19 de outubro – conjuntamente com os ex-secretários de Estado Laurentino Dias e João Paulo Rebelo, sob superior moderação de José Fanha Vieira – tive oportunidade de expor o que entendo sobre a importância das Leis de Base para o desporto, tentando agora, neste artigo, resumidamente, verter para o papel tal reflexão, partilhando-a consigo, caro leitor.
A IMPORTÂNCIA DA LEI
A meu ver, em geral, a lei é importante para o desporto, para o desenvolvimento do desporto, mas não é decisiva: vale este raciocínio para toda a hierarquia de leis, designadamente para as Constituições e para as Leis de Base. Há países que nem sequer têm o desporto inserido na Constituição (por exemplo a Itália só este ano introduziu o desporto na sua Lei Fundamental), mas que têm bem maior literacia desportiva do que nós. E há países que não têm Lei de Bases para o desporto, mas ainda assim apresentam um desporto bem mais desenvolvido que o nosso, com mais hábitos de prática desportiva.
Na verdade, nem tudo depende de iniciativas legislativas. Por exemplo, uma das iniciativas de que mais me orgulho do Governo a que pertenci foi a criação do Plano Nacional de Ética no Desporto (PNED), ainda hoje com grande sucesso – graças, fundamentalmente, ao labor do seu coordenador, José Carlos Lima –, não careceu de qualquer legislação de suporte…
É evidente que a lei tem a sua importância, claro que sim, e já que referi acima a Constituição, saliento que acho que se perdeu uma oportunidade, no quadro da atual revisão constitucional, de propor alterações ao artigo 79.º da Lei Fundamental: por exemplo, a questão do papel premente das empresas na promoção da atividade física e do desporto, recentemente enfatizada pelos poderes públicos face aos números negativos do Eurobarómetro do Desporto, não tem consagração constitucional. E essa importância da lei surge desde logo ao nível macro, numa sistematização jurídica das políticas desportivas [que, a meu ver, carecem de um prévio Plano Nacional do Desporto– sob pena de se “colocar o carro à frente dos bois”…] ou também da organização sistémica institucional [por isso, a meu ver, andou bem, em 2004, a Lei de Bases do Desporto, ao inserir o Comité Paralímpico de Portugal e a Confederação do Desporto de Portugal. Esta, todavia, incompreensivelmente retirada em 2007, não consta da LBAFD].
Para se ver as limitações do alcance da intervenção da lei, pense-se no vasto e bom acervo legislativo que temos em sede do binómio desporto/saúde e na sua não correspondência nos resultados da aposta no desporto como instrumento de saúde.
Ademais, mais importante do que ter uma lei muito bonita, muito completa, é ter a certeza de que a mesma vai ser efetivamente implementada. Pequeno exemplo: logo em 1990 a (então denominada) Lei de Bases do Sistema Desportivo remetia para diploma próprio a função do “gestor desportivo profissional”, e depois teve que retirar-se essa previsão, porque esse diploma próprio nunca chegou a ver a luz do dia…
MAIS E MELHOR FISCALIZAÇÃO
Em minha opinião, o que o Desporto Português precisa, mais do que legislação, é, desde logo, que a legislação já existente seja objeto de mais e melhor fiscalização. Não faltariam casos concretos para ilustrar esta questão e já tentei formular, também nesta revista, algumas propostas de mudança.
Simultaneamente, mais do que legislação, o Desporto Português precisa de um outro modelo de financiamento, menos dependente dos jogos sociais, e com bem maiores dotações financeiras. Não se entenda, porém, que estou a desvalorizar o papel da legislação, designadamente no desporto – longe disso. Conheço a sua importância, desde logo por deformação profissional. Evidentemente que a legislação pode, aqui e ali, ser bastante útil, e há áreas, por exemplo, onde se pode e deve atalhar caminho.
Na LBAFD, a roda está inventada – as leis-quadro do desporto adotadas em Espanha (recentemente) e em França são boas práticas que podem ser seguidas, levando-nos a introduzir ou a desenvolver mais o que já temos, em temas como governança, igualdade de género, proteção de menores, abuso sexual, cidadãos com deficiência, desporto universitário, desporto escolar…
A par, creio que nos diplomas de desenvolvimento das bases, a legislação pode ser veículo importante para mais e melhor desporto, desde logo ao nível da fiscalidade: é um verdadeiro escândalo continuarmos a ter um IVA de 23% para aceder a serviços desportivos e deve apostar-se no Mecenato para Atletas (a título individual). Por outro lado, deve proteger-se mais os atletas ao nível da segurança social, designadamente concedendo-lhes proteção na doença (não profissional). Importa rever a Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, em especial a questão dos recursos… E, claro, last but not the least, cabe perguntar: para quando a revisão do Estatuto do Dirigente Desportivo em Regime de Voluntariado (a Região Autónoma da Madeira já o fez…), incidindo e motivando as verdadeiras células do associativismo desportivo nacional?
O ideal, o necessário mesmo, era conseguir o puzzle completo: legislação, fiscalização, outro modelo de financiamento. Vamos a isso?