ALEXANDRE MESTRE

OS E-SPORTS SÃO UM DESPORTO?! – Em janeiro, o Comité Olímpico Internacional (COI) anunciou que em março próximo vai criar um departamento específico para os esports (desportos eletrónicos ou virtuais), tendo em vista, acima de tudo, “aproveitar a crescente popularidade” dos mesmos e “aumentar a relação direta com os jovens para promover o Movimento Olímpico, os valores olímpicos e a participação desportiva”. Confesso que não sou, nunca fui um grande entusiasta dos e-sports. Não por ser conservador, avesso à mudança, mas porque encaro esta atividade como tendo muito do que é a antítese daquilo que concebo como os pilares do desporto – quer no plano do esforço físico, quer na dimensão da sociabilidade, quer mesmo, em alguns momentos, na dimensão dos valores. E não estou sozinho nesta perceção. Há mesmo opiniões muito mais críticas e céticas do que a minha. Todavia, tenho de confessar que, quando há tempos, a convite do Comité Olímpico de Portugal, elaborei um artigo para uma obra coletiva, cujo repto era tentar saber se os e-sports são ou não desporto, tive que me vergar: pelo menos na ótica jurídica, creio que são mesmo desporto. E é essa reflexão que aqui tentarei, muito sucintamente, partilhar.

DEFINIÇÃO DE DESPORTO – Ao nível dos textos normativos emanados das organizações desportivas nacionais inexiste uma definição de desporto. O mesmo se diga da legislação estatal – ao contrário do que sucedeu, em 2004, quando o legislador importou para a então Lei de Bases do Desporto o conceito de desporto vertido na Carta Europeia do Desporto – em que atualmente não há uma definição legal de desporto. Por seu turno, internacionalmente, ao nível dos entes privados, a Carta Olímpica, Magna Carta do Movimento Olímpico, adotada pelo COI, não inclui qualquer definição de desporto, sendo que ao contrário da Sport Accord, que fez uma aproximação ao conceito de desporto, a (hoje) GAISF – Global Association of International Sports Federations – não procede a tal tipo de conceptualização. Já no plano dos instrumentos jurídicos supranacionais adotados pelos Estados, a única conceptualização jurídica existente é a constante da Carta Europeia do Desporto, no âmbito do Conselho da Europa, instrumento jurídico que é de soft law, ou seja, não vinculativo. Ora este enquadramento dificulta, necessariamente, a nossa tarefa, a tarefa de quem procura no Direito, nas normas positivadas, uma definição de desporto, para a partir daí saber se, juridicamente, os esports integram ou não aquela definição. Ainda assim, sendo a Carta Europeia do Desporto emanada do Conselho da Europa, com o contributo do Estado Português, e face também à sua natureza única, é esta a fonte e face também à sua natureza única, é esta a fonte normativa na qual assentaremos a nossa análise. Segundo o artigo 2.º, n.º 1 da Carta, “[e]ntende-se por desporto todas as formas de atividades físicas que, através de uma participação organizada ou não, têm por objetivo a expressão ou o melhoramento da condição física e psíquica, o desenvolvimento das relações sociais ou a obtenção de resultados na competição a todos os níveis”. Daqui se retira que é despicienda a finalidade da prática, porquanto essa prática será sempre um desporto. Também não é determinante se a prática é ou não organizada. O que, efetivamente, e sempre na definição do Conselho da Europa, já não se afigura indiferente é a natureza da atividade prosseguida: só caberão no conceito de desporto “todas as formas de atividades físicas”.

ENQUADRAMENTO DOS ESPORTS – Em face do acima exposto, e enfatizando que a nossa análise se ancora na definição da Carta Europeia do Desporto, do Conselho da Europa, somos conduzidos a concluir que os esports são desporto. Vejamos. Sendo despicienda a finalidade da prática, não importa se se joga esports para competir ou como forma de ócio/entretenimento; não releva se os jogos foram criados com fins lucrativos/comerciais ou se desempenham essencialmente uma função social. Também não releva se um jogador de esports o faz individualmente/informalmente num espaço virtual sem contacto direto com outros indivíduos ou, se pelo contrário, o faz numa dinâmica competitiva, em grupo num contexto promovido e organizado por uma determinada entidade/instituição, designadamente o fabricante do jogo ou o chamado publisher. Aquilo que não é, efetivamente, indiferente, na aceção de desporto dada pelo Conselho da Europa, é a natureza da atividade prosseguida: nessa medida, os esports caberão no conceito de desporto se os considerarmos como “formas de atividades físicas”. Esse é o cerne, o nó górdio da questão. Ora nessa exegese, o conceito de atividade física é, pois, fundamental, sendo que não vislumbramos, do ponto de vista institucional e internacional, outra referência de definição mais relevante do que a da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A ATIVIDADE FÍSICA – De acordo com aquela agência especializada das Nações Unidas, atividade física é qualquer movimento corporal produzido pelos músculos esqueléticos que requeiram gasto de energia. Ora, em face desta definição, e citando o jurista brasileiro Nicholas Bocchi, “[o] exporte eletrônico, por óbvio, se enquadra na definição da OMS”. Ancorados também em alguns outros autores, elencamos, sistematizada e resumidamente, de seguida, alguns elementos que, tendo por base a definição da OMS, concorrem para sustentar que praticar esports se traduz em fazer atividade(s) física(s), a saber: (i) O cérebro é um músculo, pelo que a atividade mental consubstancia uma forma de atividade física ou pelo menos com esta interligada, o que poderá ajudar a fundamentar a razão pela qual se considera desporto (como o faz, desde logo a GAISF) o bridge, o xadrez, ou as damas (“desportos da mente” como por vezes são qualificados); (ii) A prática de esports exige uma boa coordenação entre o olho e a mão, assim como elevados níveis de concentração, coordenação, resistência à pressão, precisão, reflexos/reação a elementos externos – ou seja, movimentos que exigem destreza física –, ao ponto de a frequência cardíaca dos jogadores ser bastante forte; (iii) Os esports fazem funcionar os (mesmos) músculos de várias partes do corpo, a um ritmo em regra muito elevado, ao ponto de poder causar lesões/acidentes/problemas físicos; (iv) Os jogadores devem dispor de uma sólida preparação física para fazer frente a jogos que podem durar várias horas (podem ultrapassar os 150 minutos), o que implica um treino diário, com pouco descanso, provocando que um jogador profissional médio se retire com cerca de 24 anos, configurando-se, pois, como uma atividade/profissão de desgaste rápido; (v) A exigência de treino físico leva a que vários jogadores, tal e qual no caso do xadrez, não prescindam de preparadores físicos, ficando mesmo alguns a residir e treinar num Centro de Alto Rendimento; (vi) Não é pelo facto de os jogadores estarem sentados que se deve refutar a exigência física/postural dos esports: pense-se, por exemplo, no caso do automobilismo, em que os pilotos estão sentados.

Porventura uma análise multidisciplinar acantonará o Direito. Ou talvez não: se calhar o COI fê-la (não se quedando pelo mote que enunciou ou pelos evidentes fins comerciais que também estão subjacentes à sua decisão). Mas juridicamente, salvo melhor opinião, creio mesmo que os esports… são desporto.

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