ALEXANDRE MESTRE

O ASSÉDIO SEXUAL, O ESTADO E O QUE PARECE NÃO ACONTECER NO DESPORTOSendo o assédio/abuso sexual no desporto uma manifestação que perverte o fenómeno desportivo, a verdade é que todo o combate nesse contexto é pouco, nomeadamente a reação do Estado face a este problema global. Quase parece que falamos de uma realidade que não se passa no desporto… 

No passado dia 10 de maio, uma ex-jogadora e árbitra de basquetebol denunciou um alegado caso de assédio/abuso sexual por parte de um árbitro. Fê-lo no Diferencial, o jornal dos estudantes do IST [Instituto Superior Técnico]. O título dessa publicação fala por si: “E no desporto, não acontece? Digo alegado caso porque, como advogado e cidadão, prezo muito o princípio da inocência do arguido. Mas, a confirmar-se, será gravíssimo. Sendo importante olhar para os casos mais mediáticos além-fronteiras, julgo bem mais útil atentarmos com urgência e preocupação para o nosso país. Falamos, de facto, em algo que, comprovadamente, acontece também no desporto português. E não podemos pactuar, pela inação, pela omissão. 

Saúda-se a pronta reação da Direção da Federação Portuguesa de Basquetebol, que, logo a 12 de maio, publicou um comunicado, dando conta de que (…) remeteu o assunto ao Conselho de Disciplina para investigação dos factos relatados naquele artigo. Com base no referido artigo, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Basquetebol já abriu um processo de inquérito ao caso de assédio no mesmo relatado. A Direção da FPB condena e repudia todas as formas de assédio, moral ou sexual, exigindo uma investigação rigorosa que apure todas as responsabilidades até às últimas consequências”. Veremos o que daí resulta, em face do que venha ou não a ser dado como provado e sua subsunção ao que conste do Regulamento Disciplinar federativo. 

ESTADO AUSENTE – Desconhece-se o que o Estado português pensa sobre este flagelo, e, mais importante do que isso, o que pretende fazer para o combater. Se é certo que, para o estrito plano laboral desportivo, se consagrou legalmente, em 2017, o conceito (bem mais amplo) de assédio moral, falha uma atenção específica (do Estado legislador mas também noutras vestes) ao assédio/abuso sexual no desporto. À parte algumas afirmações pontuais de repúdio, o mais concreto que se anuncia são ainda meras intenções, como o anúncio de um Plano Nacional de Proteção das Crianças e Jovens no Desporto, numa Resolução do Conselho de Ministros, de dezembro de 2020, que aprovou a Estratégia Nacional para os Direitos da Criança para o período 2021-2024, e em que, num âmbito genérico, se aflora o tema em presença. É verdade que o abuso/assédio sexual no desporto incide muito nos menores, e todo o combate nesse contexto é pouco. Mas pouco é também o que se nos oferece catalogar quanto à reação do Estado face ao problema global. Quase que parece que, afinal, falamos de realidades que não se passam no desporto… 

Para além de diversos instrumentos preventivos e repressivos – mirando boas práticas como as do Conselho da Europa ou do Comité Olímpico Internacional – o Estado português tem de atuar, e rapidamente, no plano disciplinar, em articulação com as federações desportivas, no quadro do que lhe incumbe constitucionalmente. Mas de forma diferente da atual. 

 REGULAMENTOS DISCIPLINARES – De acordo com o Regime Jurídico das Federações Desportivas, as federações desportivas (porque titulares do estatuto de utilidade pública desportiva) devem adotar regulamentos disciplinares, tipificando infrações e sanções em matéria de “ética desportiva”, assim sancionando (…) a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo e a xenofobia, bem como quaisquer outras manifestações de perversão do fenómeno desportivo.” Sendo, inequivocamente, o assédio/abuso sexual no desporto uma manifestação que perverte o fenómeno desportivo, a verdade é que, fazendo uma busca pelos regulamentos federativos, quase não encontramos um ilícito disciplinar a este respeito. Há, ainda assim, por exemplo, um Código de Ética de uma federação e um Código de Boa Conduta de uma outra que dão importante espaço a esta questão. Mas importa, verdadeiramente, que o Estado articule com as federações desportivas para que tipifiquem infrações e sanções disciplinares na matéria em apreço, mais a mais agora que se aproxima o processo de renovação do estatuto de utilidade pública desportiva, no pós-Jogos Olímpicos.  

Seja-me permitido, também aqui, deixar uma proposta: que o Estado apresente uma proposta de norma-tipo a constar dos regulamentos disciplinares federativos, prevendo e estatuindo na matéria do abuso/sexual de menores. Devia, aliás, aproveitar o ensejo, para aprovar todo um regulamento disciplinar-tipo que harmonize, pelo menos uniformize, os regulamentos disciplinares federativos, pondo cobro a situações a que se assiste atualmente e que não fazem qualquer sentido. Não me canso de o dizer: não faz sentido que o racismo numa modalidade tenha como sanção máxima 1 ano de suspensão do agente e numa outra a sanção máxima seja de 15 anos. Não faz sentido que a xenofobia conduza a uma multa de €150 numa federação e a uma multa de € 20.000 numa outra. Não faz sentido que na maioria das federações a corrupção no desporto seja sancionada a todo e qualquer agente, mas numa ou outra apenas a alguns agentes. Não faz sentido que nos poucos casos em que já se tipifica disciplinarmente as apostas antidesportivas, se proíba, numas federações, a proibição de apostas nos resultados e incidências dos resultados (à imagem e semelhança da solução adotada no plano penal), mas noutras se proíba apenas as apostas nos resultados. Sem olvidar casos de regulamentos federativos que remetem de forma ampla para as molduras sancionatórias que a lei… não prevê, ou para leis já revogadas. Ou mesmo casos em que ainda subsiste a pena de irradiação – que é ilegal – ou em que discriminações em razão da orientação sexual ou mesmo o próprio racismo fiquem por sancionar. 

 TEMPO DE AGIR – Mas não apontemos o dedo às federações desportivas – não é sua vocação elaborar regulamentos nem andar a comparar os seus com os das outras. Ademais, muitas federações desportivas sobrevivem à custa de dirigentes em regime de voluntariado, esquecidos legalmente desde 1995, logo sem meios técnicos e humanos adequados. Com o que burocraticamente já se lhes exige hoje, fazem até milagres. Deverá, isso sim, ser o Estado a uniformizar os regulamentos, à imagem e semelhança do que já se faz no âmbito da dopagem, mas porque a isso o obriga o modelo jurídico que parte do Código Mundial Antidopagem. Com isso retirar-se-ia um peso às federações, velar-se-ia pela igualdade (porque os comportamentos que pervertem o desporto são igualmente graves em toda e qualquer federação/modalidade desportiva) e também se libertaria o próprio Estado das tarefas que a lei lhe exige de fiscalização. Fiscalização que, muitas vezes, parece não acontecer. Teríamos assim hétero-regulação e autorregulação a coabitarem numa win win situation 

É tempo de agir. Para que só aconteça no desporto o que verdadeiramente interessa, não o afastando da sua essência. Caso contrário, o que parece não é e o que não parece é. 

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