ADRIANO MOREIRA

jcf_2402LEMBRANDO O REI JORGE DA BOÉMIA

São vários os projetos destinados a garantir a paz entre os Estados, com origem em doutrinadores sem responsabilidades de governo, raramente assumidos por soberanos, de regra tendo em vista o mundo da cristandade, mais laicamente depois chamado europeu e ocidental. Sempre merecerão referência Pierre Dubois, com o seu De Recuperatione Terrae Sanctae do século XIII, filiado na circunstância medieval, e os projetos já de resposta ao Estado soberano, como o de Émeric Crucé (1623), inaugurando uma linha em que se inscrevem o Grand Dessein de Henrique IV, o de William Penn (1693), o de Leibnitz (1693), o de Saint Pierre (1713) e finalmente o de Kant, que em 1796 publica o seu Projecto Filosófico de Paz Perpétua. Todavia, para relacionar essas antigas propostas com os desafios deste milénio, parece-nos apropriado recordar o projeto do rei Jorge da Boémia, intitulado Tractatus Pacis Toti Christianitati Fiendae, uma proposta com base na qual, invocando o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, na primavera de 1464, pretendeu reorganizar o mundo político europeu, em termos de garantir não apenas a paz externa, mas também a paz interna entre os príncipes europeus. Quinhentos anos antes da instituição da ONU, sem parecer ter pressentido a transição para o globalismo, que viria a ser representada pelo futuro D. Manuel I de Portugal, nascido este em 31 de maio de 1469, fez uma enumeração de problemas e de propostas que mereceram revisitação na perturbada época, também de mudança, em que nos encontramos. Nos meados do século XVI multiplicavam-se as inquietações sobre a necessidade de enfrentar a reforma da cristandade, por estar em crise o ideal de vida que tinha encontrado expressão no livrinho de Thomas A. Kempis, The Imitatione Christi, e que viriam a ser objeto da rutura de Lutero, das queixas que Sebastião Brand exprimira em A Nave dos Loucos (1494), e da exortação no Elogio da Loucura de Erasmo, livro dedicado em 1511 a Thomas Moras, que apenas no século XX seria reconhecido Santo e patrono de parlamentares e homens de Estado. Os 500 anos do Projeto do Rei Jorge da Boémia foram celebrados por iniciativa da Academia das Ciências da Checoslováquia, ocasião de colocar em evidência os problemas cuja definição permanece, agora como uma abrangência mundial então não suspeitada. Pressionado o próprio rei por uma séria divergência em relação à Santa Sé, encontrou em vários outros soberanos, designadamente da França e da Polónia, um espírito aberto para a reorganização do mundo cristão, com uma nova perspetiva da relação da sociedade civil com o Estado, e dos Estados entre si. Embora em conflito com Roma, o rei era visto como um líder não apenas em relação à Europa Central, mas também no que dizia respeito à condução de uma frente militar conjunta contra os turcos. Longe de ser lido como um utopista, foi recordado nas evocações como um enérgico governante renascentista, que pensou muito para além do seu tempo. Afastando decididamente a supremacia do Imperador e do Papa, procurava, na síntese de Václav Vanècek, a fórmula para “uma organização da comunidade humana”, que, por um lado, respeitasse inteiramente a soberania de cada Estado, grande ou pequeno, e, por outro lado, viabilizasse a formação de uma vontade comum “para resolver os problemas da comunidade”. O desenho das instituições propostas afastava-se inteiramente do modelo medieval ainda vigente, e tentava organizar, a partir da paz e fraternidade conseguida entre os príncipes cristãos, uma frente da defesa contra a penetração do Islão na Europa, tendo os turcos como principal inimigo. Para tanto, os príncipes agrupar-se-iam numa Congregação, tendo como órgão principal um General Consistorium ou Judicium. Antes que o processo, a correr, de eleição do secretário-geral da ONU sofra dores da sua transparência, talvez os votantes devessem conhecer o projeto do rei Jorge.