DILAÇÃO
A reforma do Estado, tantas vezes prometida e adiada, lida com problemas difíceis que facilmente são enumerados, mas é o próprio adiamento que avulta entre esses muitos. Talvez por isso, ganhou tanta atenção o livro [The Fourth Revolution] a que John Micklethwait e Adrian Wooldridge sublinharam o nome com a expressão animadora, na tradução portuguesa, “A corrida global para reinventar o Estado”. Não é muito animadora a expressão quanto à prestação do Estado existente, mas a referência à “corrida global” necessária faz lembrar as palavras do padre António Vieira em sermão que pronunciou no Domingo da Quaresma de 1655, sobre as “Dilações de Despacho” quão danosas sejam à República. As palavras são estas: “Quando? Esta é a última circunstância do nosso exame. E quando acabara se houveras de seguir até ao cabo este Quando? Quando fazem os ministros o que fazem? E quando fazem o que devem fazer? Quando deferem? Quando despacham? Quando ouvem? Quando até para uma audiência são necessários muitos Quandos? Se fazer-se hoje o que se pudera fazer ontem, se fazer-se amanhã o que se devera fazer hoje, é matéria em um Reino de tantos escrúpulos, e de danos muitas vezes irremediáveis; aqueles Quandos, tão dilatados, aqueles Quandos tão desentendidos, aqueles Quandos tão eternos, quanto devem inquietar a consciência, de quem tem consciência?” Se isto era assim no tempo já por si demorado da sua vida, longe dos avanços técnicos e científicos desta época, que danos não causam os “Quandos” que se verificam numa circunstância de revolução digital, de concorrência desmedida, de atropelo pela nova dinâmica dos mercados, e ao mesmo tempo pelo crescimento do grupo de “deserdados”, num ambiente em que o “Quando” tem até som menos agudo que a queixa da desigualdade que amargura multidões. Os desembaraçados autores referidos, que seguramente nunca ouviram sequer falar do padre, sugerem que, entre mais dificuldades, as outras duas maneiras que existem para que os ministros se contenham assentam em fazer melhor uso das duas forças que estão atualmente a minar a democracia representativa, as pressões vindas de cima e de baixo – da globalização por um lado, e de eleitores afirmativos, por outro – estão cá para ficar. Mas estão esperançosos ao concluírem que “o Ocidente tem sido a região mais criadora do mundo porque tem repetidamente reinventado o Estado”. Fica visível, agora, a Dilação do Quando. É sobretudo exigente a cautela de não imaginar que a palavra “ministros”, no sermão, diz apenas respeito ao que hoje chamamos executivo, porque também tinha no pensamento a necessidade da justiça em tempo, e a tempo, coisa que nunca abandonou as suas inquietações. Que não são menores no que toca à justiça social, que o progressivamente dispensado Estado Social faz avultar diariamente no crescimento das desigualdades, cobertas pela semântica abusada da globalização, das salvaguardas do poder financeiro em estacionamentos, ocasionalmente tornados visíveis, dos recursos, nos efeitos ditos inevitáveis das destruições não criativas, na conversão dos direitos adquiridos em direitos atribuídos, na substituição dos projetos de futuro pelas inquietações imprevisíveis do dia a dia. As circunstâncias que rodeiam de perigos a União, entre as quais a inquieta relação entre a segurança e os deveres humanitários, tendo em conta que a União não é um Estado, exigem que a política do “Quando” seja revista. Porque as soluções já propostas ou em estudo exigem não desperdiçar o tempo anunciado para as tornar credíveis e eficazes, sabendo-se, pela experiência histórica, que frequentemente o tempo, neste domínio, se mede por esperanças. E destas já se perdeu grande parte.