A VIDA HABITUAL
Como que opondo-se apenas à convulsão social e política, incluindo o eventual recurso à violência armada em qualquer das suas múltiplas formas, o conceito de vida habitual corresponde mais à previsibilidade aceite da mudança do que ao imprevisto que rompe normas de conduta, previsões de futuros escolhidos, estruturas do poder, regras inclusivas, ou até extrativas. Esta serenidade não diz apenas respeito à vida interna das sociedades civis organizadas em Estados, diz também respeito à crescente interdependência global. É genericamente à preferência pelo regime da vida habitual que a condenação da luta armada, interna, ou internacional, tende para ser um valor universal, acontecendo prever que atingimos uma situação em que não é apenas um capítulo da segurança militar o que diz respeito à segurança, porque a interdependência exportou o conceito, de rompimento da vida habitual, para os domínios da economia, das finanças, das instituições da sociedade civil, e ameaçadoramente da ordem mundial. A persistência de ordens sociais internas, em que as instituições inclusivas escasseiam, ou vão reaparecendo num processo regressivo como está a acontecer na crise atual, é uma forma de violência que vai fazendo despertar para a reação violenta, contra a injustiça atribuída ao sistema, e não faltam, no globalismo do século em que vivemos, exemplos de revolta manifesta ou pressentida. A vida habitual deixou de ser padrão mais em vigor, em que a instabilidade, de consequencialismos imprevisíveis, tende para ser a regra. Para não lembrar sempre exemplos europeus, não faltam no espaço ocidental, designadamente no continente americano, evoluções inquietantes, não apenas para as populações ali sediadas, mas para as sociedades interdependentes, que são todas. O PNUD, uma das instituições internacionais não paralisadas e em pousio, já em 1994 se pronunciou detidamente sobre o que chamou “segurança humana”, enfatizando a necessidade e urgência de ações preventivas, em vista da multiplicação dos desafios inquietantes à “vida habitual”, não apenas traduzidas em consequências regressivas do desenvolvimento, mas também impeditivas do crescimento sustentado. A omissão europeia do recurso às instituições da ONU, em parte paralisadas por falta de vozes que chamem à intervenção para a qual foram criadas, não impede de se lembrarem intervenções como as que ficaram devidas ao secretário-geral Kofi Annan pedindo, até implorando, atenção à proteção dos direitos humanos, incluindo as intervenções que foram do tão criticado Estado Social, mas não esquecendo que a falta de bom governo está sempre, embora não necessariamente apenas, entre as causas da desordem. A dignidade humana, padrão da Declaração Universal dos Direitos, é de composição complexa, de modo que a violação da vida habitual tem espaço vasto para que a violência se manifeste. Infelizmente, a circunstância que rodeia a União Europeia está excessivamente composta de riscos para a vida habitual, pelo que é exigente e inadiável assumir uma política de segurança humana, que permita o regresso à vida habitual, no sentido, em que se insiste, de evolução previsível e controlável, e não de imobilismo. O que está a emergir é uma resposta aos desafios, incluindo os que respeitam aos deveres humanitários, que são dispersivos das solidariedades, e tende para a emergência de soluções preventivas dos interesses aparentemente privativos de cada Estado. Não é possível que a interdependência a que a evolução levou as comunidades políticas, possa, sem regresso, ser ignorada. E por isso os movimentos de regresso à soberania do passado serão apenas capazes de reimplantar o nome mas não a abrangência de outros tempos, porque, insistimos, os poderes são múltiplos e dificilmente todos os Estados terão capacidades iguais. A ONU já admitiu isso com a graduação resultante do Conselho de Segurança, e nele não está a União Europeia, que não é um Estado, os seus componentes que guardam a posição originária, a França e a Inglaterra, não possuem nem as capacidades que o globalismo exige, nem ambas a exigida intervenção na União. O regresso à prometida vida habitual exige o “bom senso” que Aron doutrinou, designadamente sabendo escolher o mal menor, mas nem essa sabedoria se conserva incólume no legado que deixou. A vida habitual chama-se hoje insegurança.