ADRIANO MOREIRA

JCF_2402A CIRCUNSTÂNCIA

Nas épocas de rápida alteração, reconhecida ou pressentida, da ordem internacional, os centros políticos não podem confundir as racionalidades ideológicas com os factos. Está a acontecer tal equívoco com a distância entre os tratados que defiram uma articulação de objetivos, valores e ações, e o que as circunstâncias vão impondo, ao notificá-los de eventos, que por vezes se traduzem em previsões desatendidas. Foi por isso que, como foi dito e reproduzido com frequência por Jean-Claude Juncker, “todos sabemos o que fazer, mas não sabemos conseguir ser reeleitos depois de o termos feito”. Trata-se, em regra, da fidelidade à certeza do caminho único, que a realidade imaginativa e plural desdenha. Acontece isto com a União Europeia, submissa à ideologia do orçamentismo, uma ferramenta adotada para “separação de Leviathan”, para finalmente abrir carreira à perplexidade das sociedades civis atormentadas com a questão do saber o que fazer com o Estado, isto é, admitindo que foi uma invenção não dispensável, que a reconstrução é necessária para assegurar a utilidade. Parece cada vez mais evidente, olhando as múltiplas promessas não cumpridas de reformar a inversão, que a inércia é mais causada pela ignorância da realidade mal estudada, do que pela escolha conservadora do modelo preservado por uma metodologia partidária. Este processo teve consequências, por exemplo, em relação à ONU, de nascimento tão criteriosamente discutido, e rapidamente constrangida pela Ordem Militar da Guerra Fria, que remeteu para a semântica caridosa muito do futuro sonhado. A circunstância foi comandando a evolução, com total desprendimento das certezas dos “caminhos únicos”. O mesmo está a acontecer com a União Europeia, que pretendeu consagrar nos factos o pensamento da longa teoria de projetistas da paz europeus, entre os quais avulta Kant, e que agora, buscando o caso da Ucrânia como exemplo, é obrigada a meditar sobre o alargamento sem estudos de governabilidade, e sobretudo a prestar atenção à avaliação da defesa e segurança autónomas, sem estudos sobre as fronteiras amigas e sem previsões orçamentais que a ideologia dominante tenha previsto. A impressão é que evolucionou sem atenção à circunstância, teimosa na descoberta do caminho único. Para facilmente se encontrar rodeada de ameaças de que sofre os efeitos, tendo participado nas causas apenas com o alheamento. O poder de informação coloca a descoberto um facto já pressentido por alguns analistas, que é o de, na cena mundial, orientar centros de poder, com normativas próprias e poderes repartidos, que não eram senão anónimos; os governos abalam, a confiança é atingida, os encargos das sociedades civis são de distribuição aleatória; saber como reformar o Estado, ou mais exatamente a governança mundial, para ao menos ter paz mesmo sem abundância, vida habitual ainda que com carências. Mas sobretudo acontece que a ambicionada vida habitual, isto é, com direitos e segurança, e autenticidade do sistema, vê subitamente que a guerra vai assumindo o nome que até aqui tinha sido recusado, como formas que se afastam da diplomacia clássica, não entre Estados soberanos, como parece ainda assim sem progresso, mas étnicas, religiosas, civis, do fraco contra o forte, e assim por diante. E infelizmente ocorre o comentário de Philip Howard, segundo o qual as falhas de que sofremos são causadas “porque ninguém está a tomar conta”, naturalmente, neste turbilhão que não atinge apenas a Europa, e nela Portugal, porque o globalismo tem seguramente mais sedes, mais interdependências e mais consequencialismos do que aqueles que já julgamos conhecer, mas entre os quais as circunstâncias são sempre mais graves para os povos e comunidades mais expostos aos efeitos em cujas causas não participam. Portugal é com evidência um dos povos submetidos a tal eventualidade, com evidência do facto de o pensamento mais dominante da sua ordem discutida estar predominantemente, e por vezes exclusivamente, dominado pela pertença à União, esquecendo a “estratégia do saber” que não dispensa a circunstância, apenas a evolução da pertença à NATO, à ONU, ao BIT, à CLP, e que a complexidade da circunstância, a partir das debilidades estruturais, obriga a ter presente a relação com o Mediterrâneo, com o Atlântico Sul, com o Oriente, com as comunidades de emigrantes e seus descendentes, com o seu passado para ter uma voz presente na definição do futuro. Porque a falta de atenção vigilante da circunstância, de que as universidades não podem ser obrigadas a alhear-se, facilita a oportunidade de que o imprevisto está sempre à espera.