O NOSSO DURO TEMPO – Depois do cataclismo interno que foi a guerra civil dos ocidentais de 1939-1945, com epicentro na Europa a lidar com os seus demónios interiores, a chamada guerra fria, que demorou o meio século que terminou em 1989, foi uma surpreendente vida habitual. Por meados do século XX tornou-se promissora, e ativamente cultivada, a nova prospetiva que determinou a criação de departamentos estaduais, algum rejuvenescimento dos programas académicos e intervenção de conclusões entusiasmastes da investigação, como foram as dos sucessivos relatórios do Clube de Roma.
As referências normativas da Carta da ONU, das suas resoluções e propostas, com especial relevo para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, lidavam mais com a espuma do tempo do que com a realidade, disciplinada esta pela Ordem dos Pactos Militares da NATO e de Varsóvia, mais conservadora do que o alegado conflito ideológico deixava supor. É certo que o medo recíproco da destruição mútua assegurada, depois da domesticação da energia atómica, exprimia um pico, sem precedente histórico, da secular inquietação causada pelo desequilíbrio das capacidades militares. Mas a resposta soviética que equilibrava a balança estratégica, a qual levou Aron a definir a situação como de paz impossível, e de guerra improvável, tinha referências herdadas que condicionavam as doutrinas, as estratégias, e as táticas, com Gaston Bouthoul a sistematizar uma nova área das ciências sociais que foi a polemologia, nos seus trabalhos fundamentais Fonction Presume et la Périodicité des Guerres (1939) e Traité de Polémologie (1991).
Entre as referências, a soberania renascentista era um atributo do conceito de Estado, as fronteiras geográficas eram geralmente consideradas sagradas pelo sangue derramado a implantá-las, ou sempre lembradas pela angústia de terem sido impunemente violadas, a natureza nacional das comunidades um valor ambicionado e venerado, a guerra um instrumento da política, o interesse permanente afirmava-se como elemento estrutural do conceito estratégico dos governos, e o patriotismo, incluindo o da Terceira Roma moscovita, um sentimento que orientava o civismo de cada membro do povo.
Putin, perdurando a fé na Terceira Roma e no seu destino, conseguiu supor que está rodeado pelo apoio da fé ao seu percurso de anarquista da ordem internacional, levando a Ucrânia ao desastre, que só termina quando supõem ter descoberto a fronteira do Império que quer recuperar. Entrámos numa época de tempo tríbulo, em que a sobrevivência dos conceitos clássicos do passado tende para puramente virtual; em que o presente não encontrou categorias racionalizastes do processo que por isso se desenha anárquico; em que o futuro está nimbado de incerteza, refratário a ser apreendido por uma futurologia confiável.
A responsabilidade para o impedir de continuar é da Ordem Mundial, sem exceção porque tudo está envolvido pelo risco.