EM BUSCA DE EXEMPLOS – O que está a passar-se em França, no que respeita à relação da nação com a história de Napoleão, parece um exemplo definidor da crise da relação da época que mundialmente se articula com o passado que usa ser reconhecido sem benefício de inventário pela geração herdeira. Em vez de ser o glorificado, cresce um movimento de apagamento que alerta a ação, e a glorificação do lugar do túmulo dos notáveis não lhe é considerada apoiável. As questões com Joséphine de Beauharnais, incapaz de lhe dar um herdeiro, são vistas com maior benevolência. O lado positivo da geração que vive este período de crise global consegue proclamar a adesão ao que Serge Halimi designou como “Vive le risque systémique”, abordando que “um dos elementos mais prometedores do Plano Biden é a sua universalidade”, embora pareça ter alguma prudência com o enfrentamento global da crise de Covid-19.
Entre nós o conflito com a herança do passado, largamente apoiado pela recusa do benefício de inventário, foi o sentido assumido de destruir a consagração da responsabilidade pela ocidentalização do globo, destruindo o monumento que glorifica o infante D. Henrique, que teve às suas ordens a Ordem de Cristo, uma versão da extinta Ordem dos Templários em França, mas que o rei D. Diniz conseguiu transformar no Reino de Portugal. A grandeza do projeto da União Europeia, para além do praticado abuso de tratar a presidente da Comissão Europeia como a rainha Ginga, o que é mais saliente do que a inquietação da União de quando o Reino Unido se afastou, tem feito merecer atenção o livro de Kalil Ghibran intitulado O Profeta (2017), apontado como “uma obra preciosa universalmente inspiradora”, na tradução excelente de José Luís Nunes Martins, que considera que “ler e meditar nas palavras de O Profeta é fazer uma viagem à razão da nossa existência”. Infelizmente não se trata nunca de raízes esperançosas do futuro porque se multiplicam as demonstrações não esquecíveis da realidade do Presidente Bush quando avaliou o desastre das Torres Gémeas de Nova Iorque, e anunciou que era “tarde para os homens e cedo para Deus”.
Não se pode ignorar que o futuro da reeleição do Presidente da França está a sofrer abalo crescente da sua esperada concorrente, e que talvez o seu maior risco esteja na desordem que levou à intervenção criminosa do ataque terrorista, que agora avança com excessiva cruel liberdade no Norte de Moçambique. Trata-se de uma suficiente referência à multiplicação de sinais negativos para a esperada Paz de 1939-1945, como se o globo tivesse de ser reinventado, sem presença do passado, com desencanto na relação com o presente, e descuido provável com a herança a criar para a geração que receberá uma nova vida que não será por nós próprios vivida. É certamente um conselho inviolável não esquecer os erros do passado, e sobretudo os do presente, mas não adotar o desencanto sem remédio imposto pelo passado. Este não tem que ser recebido a benefício de inventário, mas não tem que ser esquecido, porque é a memória que impede a repetição.