ADRIANO MOREIRA

JCF_2402 PRIMEIRO A EDUCAÇÃO E A CULTURA

O fim da II Guerra Mundial, depois de a paz das armas ter exigido a definição e construção de um futuro que para sempre excluísse catástrofe semelhante, pareceu finalmente ter acordado os deuses no sentido de fazerem circular o poder para homens tocados pela santidade, responsáveis pela reorganização inadiável. Foi assim que homens como Marshall, cujo plano (1947) de ajuda económica a todos países europeus não distinguia vencedores de vencidos, estadistas como Robert Schuman, Konrad Adenaeur e Alcide de Gasperi, vieram a inspirar o Tratado de Roma (25 de março de 1957) colocando a unidade no lugar da retaliação, além de, entre mais exemplos, como Mahatma Gandhi e Mandela, estes mais testemunhas, apóstolos e mártires, em nome dos valores que se tornaram o evangelho da UNESCO. Quando, em 4 de novembro de 1946, a organização, já fundada, assumiu o objetivo de contribuir para a paz e segurança do mundo que sofrera 50 milhões de mortos pela guerra que verdadeiramente nenhuma potência ganhou, pareceu-me ter como alicerce a convicção de que o poder da palavra pode vencer a palavra do poder. Não esquecerei a sessão em que os EUA, contrariados com o projeto de reorganização da rede de informação em termos de não subordinar o então chamado “terceiro mundo” às perspetivas do mundo afluente do norte, em 1984 declararam não poder pertencer a uma organização em que os que pagam não mandam, e mandam os que não pagam. Regressaria felizmente em 2003, justamente no ano em que foi adotada a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da Humanidade. É neste domínio que principalmente encontro a contribuição insubstituível da UNESCO. Uma das esperanças que marcam a fundação da ONU é o facto de tendo a Carta sido escrita fundamentalmente por ocidentais, à medida que a descolonização fazia ouvir na Assembleia, pela primeira vez na história da Humanidade, a voz livre de todas as áreas culturais, se abriu caminho aos conceitos, ainda dificilmente aplicados, da “terra casa comum dos homens”, do “mundo único”, da necessidade de adotar a perspetiva histórica do “género humano” agindo como unidade, incluindo as fraturas entre diferentes grupos e poderes. Daqui que se destaquem as numerosas iniciativas da UNESCO contra os “mitos raciais”, o analfabetismo, a pobreza, a relação do homem com a biosfera, a proteção do património mundial, cultural e material (1972), a criação da Universidade das Nações Unidas em Tóquio (1975), abrindo caminho ao que entre nós foi chamado a “quarta dimensão da Universidade”, que é principalmente a de decifrar o globalismo, na sua composição, e efeitos. Quando, em 1945, Ellan Wilkinson, ministro do Reino Unido, leu em sessão solene o ato constitutivo da UNESCO, não persentiu seguramente a relação entre a dimensão dos esforços e resultados sobre o património cultural tão diversamente composto dos humanos, sem distinção de etnia, cultura ou religião. Infelizmente, os analistas da evolução política voltaram a caracterizar a conjuntura com a expressão “guerra em toda a parte”, mas sem ainda apagar a convicção de que o poder da palavra vencerá a palavra e ação dos poderes que teimam em desrespeitar os valores comuns da Humanidade que a UNESCO defende sem fadiga e poucos recursos. Uma das dificuldades evidentes é a que sempre perdura quando os textos continuam distantes das efetivas regras e valores condicionantes dos governos e das diferentes sociedades civis, a maior parte das quais foi colocada perante um mal conhecido projeto de uma ordem consequente da descolonização, e a permanência da sua secular memória de viver a experiência coletiva. Basta olhar para a complexa rede das contradições e solidariedades na área vinculada ao Corão, e também com humildade para as diferenças entre as igrejas cristãs e os conflitos que enchem a história dos poderes políticos que invocavam os Evangelhos, para admitir que o primeiro dos desafios que este século continua a enfrentar é o da educação, da cultura e da ciência, base para o entendimento da diversidade das áreas de que o “mundo único” é composto e que o valor da “casa comum dos homens” procura conduzir à unidade articulada das diferenças. Pelo que toca à União Europeia, recordemos que Monnet, ao meditar, no fim da vida, nos serviços que prestara, lembrou que talvez devesse ter começado pela cultura e não pelo mercado para unir os povos da guerra finda. O dia a dia deste começo de ano sem bússola, aquilo que vai sublinhando é o acumular das diferenças, dos conflitos, das calamidades, das falências. E quando a solidariedade da Europa vê ameaçada a unidade, talvez os que têm responsabilidades pela defesa da unidade do “mundo único”, como acontece com a CPLP e o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, possam intensificar ação e projetos viáveis, para que essas organizações fortaleçam a solidez do movimento em defesa da paz neste mundo em crise. Não faltam exemplos a exigir que o caso único que representam aprofunde os princípios, ações e identidade.