ADRIANO MOREIRA

A GARGALHADA

Durante o século XX, e depois de a Segunda Guerra Mundial ter incluído na sua vitória final a derrota do nazismo e regimes aparentados por correntes que desejavam construir um novo futuro de Estados de Direito, e de uma governança mundial inspirada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, desenhou-se um confronto sobrevivente entre liberalismo e sovietismo. O colapso do sovietismo abriu espaço para a famosa e praticada sentença da primeira-ministra da Grã-Bretanha, segundo a qual não havia alternativa para a ideologia liberal, e não pode negar-se um ativo, variável com as latitudes das culturas e diversidade das semânticas políticas, mas incluindo a vigência alargada do respeito pela dignidade dos homens que a ONU visava. Entretanto, a realidade que se instalou anda longe do por ela sonhado, não apenas pelos efeitos da quebra de autenticidade, não adquirida ou perdida, pela identidade que a propaganda garantiu a conquistadores do poder que apenas cultivaram o pragmatismo de realização dos que consideram exclusivamente os seus interesses, um pragmatismo que se considera gratificado pelos resultados e não pelas previsões normativas anunciadas nas proclamações. O que tudo permitiu que a desejada proeminência do modelo liberal, tão esperançadamente doutrinada por Barack Obama, crente de que tal linha levaria às desejadas paz e abundância, e justiça social, inevitavelmente fosse ferida. A crise financeira e económica mundial vai afastando os que esperavam crentes pela efetivação da profecia, somando-se as desordens políticas internas e internacionais, um panorama de ameaças não apenas já em exercício com os cataclismos económicos que o atual governo dos EUA avalia com benevolência, mas também de agravamento dos conflitos militares, não apenas os que se encontram em curso, como acontece do Cabo ao Cairo, mas também a guerra que desencadeie a cascata nuclear capaz de destruir o planeta, ou desastres tecnológicos no panorama de avanço para a veneração da inteligência artificial capaz de impor uma ciência sem consciência. Tudo o que por exemplo Harari revela com os seus divulgadíssimos estudos, já publicados entre nós pela Elsinore – Sapiens: História breve da Humanidade (2013) e Homo Deus: História breve do Amanhã (2017), de leitura altamente recomendada, designadamente por antigos responsáveis americanos como Obama e Bill Gates. Estas recomendações não devem ter alargado o crédito de estudos da presidência dos EUA, à qual também não impressiona que o Sul do continente viva a ameaça de uma governação Bolsonaro no Brasil, ou o agravamento da já vasta desordem política no mundo muçulmano, ou a gravidade da linha terrorista, nem os populismos que rejeitam as estruturas presentes pelo desencanto que sofreram, mas sem capacidade para definir o futuro a assumir. Na intervenção de Trump na Assembleia Geral da ONU em 25 de Setembro, de facto, criticando severamente o Irão, não lhe ocorreu dizer algo sobre os efeitos esperados pelo abandono do acordo nuclear com esse país, do qual já recebeu uma resposta contundente. Não lhe ocorreu avaliar a debilitação que está a causar à segurança ocidental, e tudo porque se considera um providencial governante, sem equivalente na história dos EUA, e que espera modelar o eixo da roda da governança mundial. A gargalhada com que foi saudado, pela Assembleia, o anúncio desta visão redentora, lembra o antigo comentário de que uma “gargalhada” passada sete vezes ao redor de uma suposta fortaleza a derruba como se fossem assaltos de agressores. A intervenção de resposta do Presidente da República Portuguesa fica como um apelo à autenticidade na ONU, e à consideração da não expressamente invocada implicação de atitude americana, em face de exigências da já chamada “guerra das estrelas”, que é, pela incapacidade de ser fiel aos princípios, uma das consequências desta infundamentada arrogância.