A recente polémica referente ao acesso a medicamentos de elevado custo para o tratamento da hepatite C reacendeu o debate sobre o acesso à inovação terapêutica e a sua compatibilização com a sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Uma questão decisiva voltou a ser colocada: existirá um limite para a decisão e prática médica, em particular, nas áreas de intervenção terapêutica mais onerosas para a sociedade? No fulcro desta polémica gerou-se um debate de enorme complexidade em torno da legitimidade ética do racionamento em saúde, por oposição à consensual racionalização assente na ideia de justiça que preconiza o incremento máximo de todos os direitos dos doentes, atribuída, em tese geral, a John Rawls. Em certa medida assistimos a uma tentativa de levar à prática o princípio defendido por Norman Daniels, professor de Bioética em Harvard e autor da expressão “responsabilidade para a razoabilidade”, quando este referiu que “(…) na impossibilidade de se conseguirem consensos ou compromissos no que se refere aos princípios da justiça distributiva, não resta outra alternativa senão deixar para os órgãos governativos a resolução justa e legítima do desacordo moral”. Este constituiu, aliás, um dos suportes teóricos fundamentais à proposta de modelo de deliberação do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) no seu último relatório sobre esta matéria. No caso recente, o resultado final acabou por ser favorável à justa pretensão dos doentes, não permitindo contudo, mais uma vez, a definição de uma estratégia clara sobre a forma como o Estado, através do SNS, vai gerir no futuro o acesso à inovação terapêutica. Ainda assim, no rescaldo deste difícil processo, valerá a pena aduzir algumas considerações. Os sistemas de saúde confrontam-se com problemas de sustentabilidade, económica e financeira, resultantes da exposição a um mercado global de inovação que não controlam e a um aumento crescente das necessidades em saúde. As restrições orçamentais extremas contribuem para o agravamento das desigualdades no acesso. A ausência de explicitação uniforme de critérios ou a sua falta de transparência acabam por comprometer a equidade no acesso, para o mesmo tipo de doentes e de doenças. O dilema moral e ético encontra-se profundamente ligado à qualidade das escolhas, à sua natureza e critérios. A racionalização da oferta de tecnologias da saúde constitui um imperativo ético na utilização dos recursos públicos, devendo ser suportada em critérios científicos, técnicos e económicos, de modo a ser aferida com justiça, rigor e independência moral. É indispensável que exista uma orientação estratégica, de médio prazo, relativamente às questões do financiamento e da sustentabilidade, que deverá ter em conta o papel fundamental do sistema de saúde na coesão social. A emergência orçamental não deverá servir para justificar a introdução de medidas ou de incentivos desadequados que promovam desigualdades no acesso e na qualidade dos cuidados de saúde. A gestão ativa da relação entre o custo e a qualidade dos cuidados de saúde e as respetivas condições de acesso deverá, por estas razões, ter em conta o indispensável equilíbrio entre o desenvolvimento do sistema de saúde, os direitos dos cidadãos e a necessária sustentabilidade, económica e financeira, do sistema de saúde.