
Os mais de 20 anos passados na gestão autárquica cedo fizeram crescer em mim a convicção do interesse de um poder intermédio entre municípios e administração central, com legitimidade e competências para atuar numa escala adequada à maior eficácia e eficiência em algumas áreas das políticas públicas.
O interesse em aprofundar tal modelo, previsto na Constituição da República, mas nunca traduzido na nossa arquitetura institucional, levou-me nos anos 1990 à Universidade Técnica de Lisboa, tendo concluído grau de mestre em Planeamento Regional e Urbano e onde foi grato conhecer professores como Manuel da Costa Lobo, Paulo Correia, Natalino Martins, José Manuel Fernandes, Fernando Nunes da Silva, entre outros.
Passaram mais 20 anos e o tema continua a merecer um adiamento que já não me permitirá uma avaliação da sua bondade ou um juízo sobre o seu contributo para a modernização e o desenvolvimento do país. Recorro por isso a algumas referências, para esta reflexão, ao legado do Prof. Luís Valente de Oliveira, ministro da Educação e Investigação Científica (1978/79) e ministro do Planeamento e da Administração do Território (1985/1995) que no livro Regionalização (Edições ASA, 1996) refere: “Em meu entender, não se trata somente de cumprir uma promessa antiga. O que está em causa é concretizar uma inovação institucional que, desde o século passado, se vem tentando mas que, por falta de empenhamento ou de jeito, ainda não se conseguiu fazer: a institucionalização, no Continente, das autarquias de nível intermédio entre locais e o Estado.”
O mesmo Prof. Luís Valente de Oliveira, no livro Novas considerações sobre a Regionalização (Edições ASA, 1997) refere: “A regionalização é um processo que só há-de produzir resultados a médio ou longo prazo. Por isso não é facilmente articulável com calendários eleitorais nem com pressas. Ela corresponde, de facto, a uma mudança estrutural do nosso sistema político-administrativo que deve ser bem feita e de forma gradual para não se ter de voltar para trás, vacinados em relação a um novo arranque.” Num livro de 1998, do Ministério do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, Descentralização, Regionalização e reforma democrática do Estado, podemos ler: “Uma moderna democracia europeia exige a reforma de uma Administração Pública ainda hoje marcada por um centralismo incoerente e burocratizado que afeta a eficiência das políticas públicas, torna a decisão administrativa lenta e penosa e constitui um sinal de menoridade de um setor público que se pretende qualificado, competitivo e participado.”
Mapa da regionalização
Tivemos um referendo onde se promoveu, talvez de forma deliberada, uma abordagem centrada no mapa da regionalização, quando parecia óbvio abordar o tema a partir das cinco regiões plano, hoje de geografia alterada pelo natural interesse em otimizar os fundos estruturais da política europeia, numa discussão marginal em torno de fantasmas e de tiques de umbigo. Lembro as questões sobre competên- cias legislativas regionais, quando o que importava era clarificar as competências dessas regiões, a questão das finanças re- gionais que importa naturalmente apro- fundar, mas que não passa ao lado da des- centralização que alguns reclamam.
Julgo que recentes estudos e reflexões têm reforçado a necessidade de promover a descentralização e avançar para a regionalização, pois a reforma da administração pública muito pode ganhar, e essa continua adiada. Reclamamos por reformas estruturais, mas ao mesmo tempo encontramos argumentos para as adiar, num ciclo controverso de desígnios que acompanham o mediatismo e o taticismo de cada momento.
A cada ciclo de fundos estruturais europeus, vamos perdendo oportunidades de estruturar políticas públicas mais eficientes, promovendo investimentos em infraestruturas públicas sem um quadro de planeamento regional. Chegará em breve um dia em que a regionalização pode perder sentido, a continuar o despovoamento do interior e a concentração da população nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Desenvolvi a vida profissional em setores da política pública, marcados por forte componente supramunicipal. Em matéria de resíduos sólidos, desde 1996 que os municípios e o Estado constituíram Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos numa escala ditada pela eficiência económica e ambiental; no setor do abastecimento de água e águas residuais, mais de 200 municípios estão integrados em soluções com carácter supramunicipal.
Os resultados obtidos nas políticas públicas setoriais da água e dos resíduos constituem casos de sucesso e reforçam a convicção na gestão de políticas públicas numa escala intermédia entre a local (municipal) e a nacional (continente), encontrando modelos que podem ser eficazes e mais eficientes.
Não podemos perder de vista que os municípios apresentam situações muito díspares, embora tendo um quadro geral de competências similar, servem populações muito heterogéneas em termos quantitativos, sociais e de rendimento, são também muito distintos os fatores para atratividade e contratação de recursos humanos.
Descentralização de competências
O quadro de referência para promover a descentralização de competências para os municípios envolve uma abordagem cuida- dosa, em termos dos recursos económicos, mas coloca desafios a outros níveis. Facilmente identificamos municípios capazes de promover políticas públicas de proximidade acrescentando valor para os cidadãos em termos de acessibilidade e nível de serviço, mas não deixamos de pensarem todo um outro conjunto de municípios que por motivos de contexto terão muita dificuldade em assumir mais competências, nunca por falta de vontade, mas porque a cada ano que passa ficam evidentes limitações das políticas de coesão.
Com origem num concelho do pinhal interior, fustigado por incêndios recorrentemente, lembro os mais de 500 habitantes daquele lugar, lembro quando corria aquelas ruelas de uma aldeia onde a eletricidade chegou quando eu tinha 12 anos, a água chegou a casa dos habitantes já nos anos 1980 e onde agora residem menos de uma dezena de pessoas. Não verei os resultados da regionalização adiada, mas como lembro as críticas ao centralismo do Terreiro do Paço, quando os Homens bons da minha aldeia reclamavam por água e eletricidade nos Ministérios da capital, continuo a pensar que já temos estudos e reflexão de base para prosseguir um caminho. Temos, sim, de definir o caminho a percorrer.
A terminar, recorro de novo ao Prof. Luís Valente de Oliveira: “A regionalização pode ser boa ou péssima conforme for feita. As leis podem ser muito sábias e as organizações muito bem pensadas mas, se não houver protagonistas à altura, as virtualidades das primeiras serão aproveitadas em muito pequena extensão.”