CARLOS CARREIRAS

TELETRABALHO, PANDEMIA E O FUTURO DA CIDADE – Uma das consequências mais perniciosas desta crise é agrilhoar-nos ao presente. Não dá tempo, nem espaço, nem capacidade de visitar o futuro. Porém, é essencial que todos o façamos. Em especial as lideranças políticas e empresariais.  

Enquanto refletia sobre os desafios que temos à nossa frente, houve um nome que me veio à memória. Alvin Toffler. Para quem não conhece, este judeu norte-americano de origem polaca era um visionário. Sem nunca ter tirado um curso, tornou-se professor convidado num das mais prestigiadas universidades americanas. Vendeu milhões de livros. De uma presciência incrível. Toffler era especial porque conseguia, de alguma forma, ver o futuro. Como? Pegando em pequenos sinais, descortinava o quadro geral de mudanças muito maiores e mais decisivas.  Toffler acreditava que o mundo tinha avançado em três grandes vagas. A invenção da agricultura, no Neolítico, que criou as cidades e fixou os nómadas, foi a primeira vaga; a segunda vaga é coincidente com o advento da industrialização. A terceira vaga, por fim, estava sobretudo centrada nas mudanças produzidas pela sociedade de informação. Estávamos nos anos 1980, e eu nos meus vinte e poucos anos, quando me cruzei com o terceiro livro de TofflerPowershift, o tal onde analisou as consequências da transição para uma economia e sociedade da informação. Para além de coisas como cidades submersas ou colónias humanas no espaço, coisas que não aconteceram (ainda), o futuro viria a provar que Toffler acertou em muitas das suas antecipações: a democratização do e-mail, a primazia do digital e os avanços digitais no setor dos media. Outra das visões de Toffler apontava o teletrabalho como forma dominante nas relações laborais de futuro. 

O TELETRABALHO E AS CIDADES – A pandemia veio apenas confirmar a intuição do autor. Em 2020, o rácio de americanos a trabalhar em casa era de 1/50. Com a Covid-19, esse rácio explodiu para mais de 1/3. Os números em Portugal e na Europa não são ainda claros. Claro para mim, enquanto decisor, é que, se por um lado o trabalho remoto veio para ficar porque alterou dramaticamente a nossa relação com o trabalho, por outro as cidades não voltarão a ser iguais. Se as pessoas ficam mais tempo em casa, se há menos gente nos centros urbanos e nas sedes das empresas, se o trabalho é menos um lugar onde se está, há aqui uma oportunidade de largo alcance para corrigir os erros de planeamento urbano. Investimentos vultuosos, sobretudo nas infraestruturas de transporte e no imobiliário, rapidamente cairão na obsolescência. Recursos escassos têm de ser dirigidos para projetos que criem sustentabilidade ambiental e social de longo prazo. Há a oportunidade de pensar as cidades como nunca as pensámos. Para ir ao futuro, vou primeiro puxar atrás a fita do tempo. A vida das cidades foi definida pelos lugares onde se vive e trabalha. A revolução industrial criou as fábricas e, com elas, a necessidade de criar centros de acompanhamento dos assuntos da empresa onde as pessoas pudessem trabalhar juntas – os escritórios. Onde, não por acaso, o alinhamento das secretárias replica a linha de produção da fábrica em versão colarinho branco. Com os escritórios – cuja função básica se mantém ainda hoje – surgiram os parques empresariais e as dispendiosas sedes corporativas. Atrás delas o comércio, os serviços, a expansão da rede de transportes e de acessibilidades e o crescimento da malha urbana. A verdade, porém, é que os escritórios são altamente ineficientes do ponto de vista da gestão dos recursos da empresa. Repare-se neste número da imobiliária JLL, citado pelo The Economist: por trabalhador, por ano, as empresas podem gastar até 10 mil euros com imobiliário afeto a escritório. Isto é uma redundância. A revolução digital, que Toffler identificou, permite que as pessoas façam a gestão dos assuntos da empresa à distância. Já não precisamos todos de ir a correr picar o ponto às nove, para sair às cinco. Já não precisamos de passar horas no trânsito ou em transportes públicos lotados. Os ganhos são evidentes e monetizáveis. Para além das poupanças em refeições, transportes, estacionamento e outros gastos tradicionais, cada trabalhador ganhará, em média, 150 horas úteis por ano, com isso podendo investir na sua formação, em voluntariado, na família ou simplesmente em cultura e lazer. As emissões de carbono, por via da menor utilização do transporte individual e coletivo, são reduzidas drasticamente. Mas nem tudo é cor-de-rosa. Há funções que, pela sua natureza, nunca serão compatíveis com trabalho remoto. Podemos, como já escrevi noutros textos, estar a cavar mais uma linha de desigualdade entre os que têm e os que não têm a possibilidade de fazer trabalho remoto. O que implica, a meu ver, a discussão de um novo pacto social em que a sociedade remunere melhor estes trabalhadores do mundo presencial. O home working ou “teletrabalho” é, porém, a realidade dos trabalhadores do conhecimento – uma outra expressão cunhada por Peter Drucker, aqueles que são hoje responsáveis pelo maior progresso económico e social das nações avançadas. 

MUDANÇAS ESTRUTURAIS – Não podemos ignorar as mudanças estruturais que estão a acontecer à frente dos nossos olhos. A par do teletrabalho, o mundo de possibilidades permitido pela tecnologia móvel – como o retalho digital ou a banca online está a contribuir para a desertificação dos centros urbanos. Se as empresas criam um ecossistema na cidade que alimenta outros empregos e outras funções em toda a economia, a sua passagem para o mundo digital destruirá esse ecossistema de emprego e de serviços. As cidades não são eternas. Adoecem, podem morrer. O teletrabalho é uma magnífica oportunidade para muita gente mas pode abrir a porta ao nascimento de cidades mais impessoais, mais desumanas e mais desertas. Essa possibilidade tem de ser contrariada pelos autarcas. Como? Criando perímetros urbanos que sejam mais atrativos, que chamem as pessoas à rua, que criem pontos de convivência social; cidades que tenham sempre a capacidade de surpreender pela qualidade de vida, pelo ambiente cuidado e apelativo, pela cultura, pela diversidade e pela harmonia. Cidades que sejam feitas em função das pessoas, não da tecnologia; para as pessoas, não para a tecnologia. 

EFEITOS DA PANDEMIA – Os efeitos da pandemia não estão apenas refletidos nas alterações ao trabalho, aos movimentos pendulares e a tudo o que isso impacta no comércio, nos serviços e no espaço público. A pandemia também está a mudar dramaticamente as funções da cidade. Repensámos as funções das pessoas e, sobretudo, reinventamos os usos dos espaços para sermos mais eficazes na emergência pandémica. Dois exemplos recentes no concelho de Cascais. 

O Centro de Congressos do Estoril: um campo de batalha contra a Covid-19. Um espaço de eventos foi virado de pernas para o ar para fazer frente à pandemia. Logo no início da primeira vaga, em março, transformámos o complexo num grande centro de testes PCR com a presença dos Laboratórios Germano de Sousa e Joaquim Chaves – parceiros no âmbito do acordo de testagem celebrado com o SNS. Mais tarde, foi no Estoril que instalámos a Cruz Vermelha Portuguesa, que lidera a operação de testes que a Segurança Social está a fazer correr em todos os trabalhadores de lares do concelho. Durante as últimas semanas, em parceria com o ACES/Cascais, preparámos o Centro de Congressos para ser uma extensão do Centro de Saúde de São João do Estoril. Este alargamento permitirá criar sete novos gabinetes médicos ADR – Apoio a Doentes Respiratórios – responsáveis pelas consultas a suspeitos de infeção pelo coronavírus. 

Hotel como retaguarda de infetados e de doentes hospitalizados com alta clínica. Com o número de infetados a escalar por todo o país, impõem-se soluções ao nível local que evitem a precipitação de novas cadeias de contágio em ambiente familiar. Atenta a este fenómeno, e sobretudo àqueles cidadãos sem condições para realizar o isolamento em casa, Cascais alugou um hotel com 70 quartos e 150 camas. A autarquia suportará o custo da renda e de todas as operações de desinfeção, manutenção e gestão de resíduos biológicos. A função deste hotel de retaguarda não se esgota no apoio a doentes. Tem uma função social, no apoio a operações de evacuação de lares e casas de repouso fustigadas pela pandemia e ainda permitir libertar camas no hospital até aí ocupadas por doentes com alta hospitalar. 

O PAPEL DA INFORMAÇÃO – Não podia terminar este texto, onde abordei parte das mudanças tectónicas que nos estão a afetar, sem dar uma palavra também aos media. Os media não são apenas uma parte vital do pulsar da cidade – por informarem, por esclarecerem, por darem conta da vivência diária da cultura, do desporto, da política e da sociedade. Os media estão, também eles, em profunda transformação. Uma mudança que não vem de hoje mas que acentuou. As pessoas procuram mais e melhor informação mas, paradoxalmente, parecem estar dispostas a contribuir menos para adquirir um bom jornal ou uma boa revista. Quero dizer que esta pandemia não se vence apenas pelo lado da saúde pública, da economia ou do social. Também se ganha com boa informação. Com guerra total às falsidades e mitos propagados pelas redes sociais. Precisamos dos nossos editores com força, para que a uma pandemia não se junte uma infodemia. Parabéns, por isso, à FRONTLINE e aos seus editores por estarem há 30 anos connosco.  

Como dizia Toffler, os analfabetos do século XXI não são os que não sabem ler ou escrever. São os que não sabem aprender, desaprender e reaprender. Não tenhamos, pois, receio de desafiar as nossas convicções. Sejamos nós líderes empresariais, políticos ou sociais.  

 

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