LOPES MARTINS

Dois anos após a intervenção da troika, como vê o sistema de saúde em Portugal?

A saúde é parte integrante da economia nacional e por isso submetida também a uma política orçamental fortemente restritiva e à necessidade de redução da despesa pública afeta à saúde. Os imperativos económicos e financeiros impostos no memorando de entendimento estão a condicionar de forma significativa o nível de financiamento e é provável que os efeitos das restrições, que já se fazem sentir de imediato, venham a prolongar-se continuadamente no tempo. Não há ainda, que eu conheça, estudos objetivos que evidenciem de uma forma direta impactos significativos na acessibilidade dos cidadãos ao sistema, nem no nível de saúde das populações. Mas num sistema de cobertura universal como o nosso, em que a redução dos recursos nos serviços e as dificuldades das famílias não fazem diminuir a procura, a escassez do financiamento público pode constituir uma séria ameaça ao acesso e à qualidade dos cuidados a prestar.

 

Acredita que vai ser possível garantir os princípios da universalidade, da cobertura geral e da gratuitidade tendencial no momento da utilização?

Infelizmente não! A evolução dos custos com saúde vai continuar a crescer, ainda que de maneira mais suave, mas crescerá sempre a uma taxa superior à taxa de crescimento da riqueza nacional. Num país de baixíssimo crescimento económico, aumentar consecutivamente a carga fiscal para suportar o crescimento dos custos seria uma solução extremamente gravosa para a economia e para a vida das famílias. “Tudo para todos tendencialmente grátis” é uma afirmação de princípio generosa e bem intencionada mas, já hoje, sem aderência à realidade, porque, ao arrepio dos princípios fixados, verificam-se na prática, de forma implícita, severas restrições à cobertura universal, à generalidade de cuidados, e são já significativos os pagamentos no momento da utilização, ainda que pudicamente continuemos a chamar-lhes taxas moderadoras.

 

A médio prazo, acredita na sustentabilidade do sistema de saúde?

Acredito que a sustentabilidade do sistema pode ser alcançada com alterações significativas na prestação e no financiamento. Assumindo que, mesmo a médio prazo, o crescimento económico do país não vai ser suficiente para acompanhar o crescimento de custos, há, do meu ponto de vista, alguns pressupostos essenciais para assegurar a sustentabilidade: – Reformulação da arquitetura do sistema, designadamente através de melhor combinação de serviços, potenciação de conceito de rede, adequação quer da dimensão da oferta quer da sua natureza (por exemplo: novas formas de abordagem à gestão da doença crónica); – Introdução progressiva da liberdade de escolha que, correspondendo a um direito civilizacional, é um potente instrumento para induzir melhoria de qualidade em todas as dimensões e maior eficiência; – Manutenção do financiamento, predominantemente por impostos, mas com a fixação de um envelope global de despesas suportável de acordo com a capacidade do país. A geração sucessiva de défices por discrepância estrutural entre os custos operacionais e os recursos financeiros que – apenas como exercício orçamental – são afetos à saúde prejudicam a economia do país no seu todo.Fixado um envelope global de despesa de acordo com a capacidade do país, torna-se imprescindível ter, em primeiro lugar, a oferta a operar com a máxima eficiência; em segundo lugar, ajustar, de forma seletiva e com uma boa definição de prioridades, os benefícios aos recursos disponíveis; em terceiro lugar, aumentar a quota de financiamento privado através de copagamentos, assumidos e estruturados como tal (e não disfarçadamente como taxas moderadoras), estabelecendo valores diferenciados em função dos rendimentos e com adoção de disposições especiais de isenção total ou parcial, também em função dos rendimentos e em função das patologias de alto custo e/ou cronicidade, independente dos rendimentos.

 

Quais considera serem as prioridades fundamentais do Estado no sistema de saúde?

Num sistema jurídico-constitucional como o nosso, ao Estado compete primordialmente o papel de garante. O Estado é o financiador, através dos impostos que cobra, e o garante de que ninguém deixa de ter os cuidados indispensáveis de que necessita, por insuficiência económica. O financiamento deve estar claramente separado da prestação, e o Estado, sendo o financiador/comprador, não tem que ser sempre o prestador. A separação transparente da função financiadora da função prestadora permite ao Estado atuar de forma competitiva, induzindo qualidade e eficiência nos operadores públicos e privados que devem, em igualdade de circunstâncias, integrar o setor da prestação.