SAMUEL FERNANDES DE ALMEIDA

índiceO FOGO QUE CONSOME A REPRESENTATIVIDADE DA NOSSA DEMOCRACIA

O dia de 17 de junho de 2017 ficará marcado, a negro, na história da nossa democracia. Um dia para não ser esquecido. Um dia em que 64 vidas foram ceifadas de forma brutal num incêndio em Portugal. Pessoas indefesas cuja vida foi retirada num cenário de horror, em que não faltam os relatos de falta de proteção e escassez de meios. Cerca de metade dessas mesmas vítimas morreram numa estrada nacional, encarceradas nas suas viaturas.

Uma tragédia inenarrável. Sabemos que o número de homens que combatiam o incêndio a meio da tarde em Pedrógão Grande ascendia a pouco mais de 150, número que subiu para cerca de 300 ao final da tarde/noite, aumentando para 700 no domingo e 1100 na segunda-feira seguinte. Estes foram dados divulgados pelas autoridades, sendo certo que após o significativo reforço de meios humanos e materiais não ocorreram, felizmente, mais mortes nos dias seguintes. Sabemos, igualmente, que o SIRESP – sistema de comunicações de redes de emergência e que já terá custado mais de 270 milhões de euros ao erário público – voltou a falhar. Como já falhou várias vezes com custo de vidas humanas, nomeadamente de vários bombeiros. Como sabemos que se acumulam os inquéritos, inclusive de natureza criminal. Ao contrário do que nos pretendem fazer acreditar, esta não era uma tragédia inevitável. Não foi um fenómeno da natureza inesperado, ainda que as condições climatéricas fossem extremamente adversas. Sabemos que havia um alerta amarelo para estes distritos face à vaga de calor que assolava o país há vários dias – estamos em junho, um mês tipicamente quente em Portugal – e finalmente sabemos que o incêndio não teve origem criminosa e começou às 14h00 de sábado. Sabemos, igualmente, que boa parte das mortes ocorreram ao final da tarde ou início da noite, altura em que o fogo se descontrolou. É o que resulta dos relatos de alguns dos sobreviventes. Como sabemos que o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais (DECIF) apenas disporia do número máximo de efetivos a partir de 1 de julho (fase Charlie).

O que correu malnaom_559cd88564ff2

Sabemos, pois, que algo correu terrivelmente mal e que constitui uma das funções públicas essenciais do Estado a proteção e segurança das suas populações. Não deixa de ser curioso que temos Estado a mais na economia, e Estado a menos nas suas funções vitais, como sejam a defesa, a segurança ou a Justiça. Como se refere num editorial do El Mundo, não é aceitável num Estado da União Europeia, em pleno século XXI, que morram tantas vítimas num só incêndio. Diria mais, numa democracia moderna não é aceitável o discurso público de desresponsabilização política a que temos assistido desde as primeiras horas desta tragédia. Afirmar-se, sem mais, que tudo foi feito para proteger as populações e que estamos perante uma quase inevitabilidade resultante de um fenómeno extraordinário da Natureza, não só é uma falta de respeito para com as vítimas e suas famílias, como demonstra a doença que corrói e mina o nosso sistema democrático. Não se trata – pois que para o efeito existem mecanismos e tempos próprios – de apurar culpados, mas sim de aferir responsabilidades políticas. A representação política consiste, nas democracias modernas, no mecanismo de transferência de poder de uma coletividade a um número restrito de representantes, para que estes, em nomes daqueles, decidam sobre o rumo e sobre as questões de Estado. Noutras palavras, trata-se de criar, naqueles que exercem o poder político, o sentimento de responsabilidade de estarem a gerir assuntos que dizem respeito a toda a coletividade. Trata-se, pois, de uma válvula essencial de qualquer sistema democrático, pois que tem associado um conceito moral e ético de prestação de contas perante o povo, o titular do poder democrático. Todos estamos de acordo que este não é o tempo do apuramento dos culpados – se os houver num plano estritamente jurídico – mas é tempo de exigir a assunção de responsabilidade por parte dos nossos representantes. Dos representantes das 64 vítimas mortais e suas famílias.

naom_55cae2ceed9a6Incapacidade de resposta

Neste cenário de manifesta incapacidade de resposta eficaz por parte do Estado em proteger as suas populações, é evidente a responsabilidade política de vários agentes, a começar no MAI, na Proteção Civil, em última instância de alguns membros do Governo. Não é aceitável o silêncio sobre esta matéria. O tempo é de luto, mas tem de ser de respeito pelas vítimas e pela sua memória, o que exige responsabilidade numa aceção ética no exercício de cargos públicos. Refugiarmo-nos nos inquéritos, no apuramento das responsabilidades numa pura aceção jurídica – que não da responsabilidade política enquanto instrumento de controlo do poder de representação – constitui um lume brando que consome a qualidade da nossa democracia e do nosso sistema de representação. A denegação da função ética no exercício de cargos políticos é a acendalha perfeita para que as vítimas de Pedrógão Grande caiam efetivamente no esquecimento coletivo. Que esperam, meus senhores, para apresentar a demissão?