O PODER NÃO SE DÁ, CONQUISTA-SE!
Se é verdade que a eleição de Guterres por unanimidade de todos os Estados-membros do Conselho de Segurança, sucedendo a Ban Ki-moon, foi uma vitória muito saborosa para o próprio, e seguramente para o orgulho de todos os portugueses, não deixa de constituir um dos maiores desafios, dado que é o cargo mais importante a nível mundial, onde as atribuições e competências do secretário-geral da ONU vão ter de ser, obrigatoriamente, reinventadas para serem efetivas.
Basta analisar a Carta das Nações Unidas que postula que as obrigações dos Estados-membros prevalecem, para os países que a ratificaram, sobre todos os outros tratados. Uma das maiores dificuldades de Guterres vai ser manobrar, quiçá miraculosamente dobrar, o Conselho de Segurança, cujo mandato consiste em zelar pela manutenção da paz e da segurança internacional, podendo inclusive autorizar intervenções militares e a quem pode dirigir recomendações. Este Conselho que é composto por 15 membros, sendo cinco permanentes – os Estados Unidos, a Rússia, a China, a França e o Reino Unido –, tem um poder de veto que, a ser usado, impede qualquer ação ou resolução, sendo que estes membros se disputam constantemente num emaranhado de interesses de conquista e influência do poder geopolítico, nas mais diversas regiões do globo. Portanto, uma das maiores complexidades do mandato de Guterres vai ser gerir estas potências com todos os seus antagonismos reais ou latentes, sobretudo entre os Estados Unidos e a China. E a história demonstra que quando Boutros-Ghali, nos anos 1990, se opôs aos Estados Unidos, perdeu o apoio destes e pagou o preço da sua não reeleição.
Os desafios
Os últimos secretários-gerais, como Kofi Annan e, sobretudo, Ban Ki-moon, sempre alinharam com as grandes potências e pour cause, este último acabou por esvaziar politicamente o cargo que deveria ser um órgão político por excelência e que é urgente que seja ressuscitado. Também arrumar a casa é outra tarefa primacial, impondo regras mais transparentes, sobretudo na admissão dos funcionários da Organização, para que a influência dos Estados mais poderosos não se continue a perpetuar, bem como continuar a manter vários conflitos congelados, que missões da ONU conseguiram estancar, como é o caso do Chipre ou do Sara Ocidental. Depois há outras missões que parecem impossíveis, como a interminável e sangrenta guerra da Síria, mas a cujo dossier Guterres, como ex-Alto Comissário da ONU para os Refugiados, será particularmente sensível. E é, justamente, nesta questão dos refugiados, que está, cada vez mais, na agenda dos Estados e das organizações internacionais, que Guterres vai ser uma mais-valia. Com efeito, existem por todo o mundo 21 milhões de refugiados, metade dos quais é acolhido por apenas 10 países dos 190 que pertencem à ONU, sendo que as responsabilidades têm de ser mais equitativamente partilhadas. De resto, sabemos que os refugiados têm provocado grandes abalos na unidade da construção europeia, fomentando nacionalismos perigosamente extremados e o regresso ao fechamento de fronteiras, num espaço que tinha, até agora, como coroa de glória, a livre circulação de pessoas. Por todos estes constrangimentos, esta questão deixou de ser meramente europeia, pelo que só resta a Guterres fortalecer a ONU para que os direitos humanos e as obrigações dos Estados se tornem mais pertinentes. Outros grandes desafios para o novo secretário-geral são o conflito na Ucrânia e a atitude beligerante da Rússia, que pode, inclusive, vir a desencadear conflitos nos Países Bálticos, que, como se sabe, já foram parte da URSS e que Putin, com o seu sonho megalómano de restaurar a grande Pátria Russa, pode tentar anexar, à semelhança do que aconteceu com a Crimeia. Contudo, também a questão de Israel, da Palestina e do mundo árabe está por resolver, mas pode ter uma solução à vista se Guterres conseguir trazer para as negociações de paz os países da região moderados e pragmáticos, que veem o islamismo radical como uma ameaça real e perigosa.
Outras ameaças
No meio de todos estes conflitos ressurge uma outra ameaça, que é a do nuclear e que, curiosamente, levou – após o termo da Segunda Guerra Mundial que culminou com Hiroshima e Nagasaki – à assinatura da Carta de S. Francisco, que fundou a Organização das Nações Unidas, herdeira da Sociedade das Nações. Com efeito, não podemos ignorar que a retórica nuclear está a ressurgir, com o expoente máximo nos testes da Coreia do Norte, mas também com o acordo ambíguo entre os EUA e o Irão, em que este, embora tendo prescindido do seu arsenal, mantém as infraesturas, com a possibilidade de, a qualquer momento, poder reativá-las. Finalmente, o atribulado processo de nomeação, sobretudo quando Kristalina Georgieva entra, já na reta final, na corrida ao cargo. À semelhança de Obama, que chamou a derrotada Hillary Clinton para sua secretária de Estado, Guterres devia também recuperar Georgieva para um qualquer cargo de importância maior dentro da organização. Era desde logo um primeiro ato de diplomacia inteligente, uma forma de conquistar os alemães, e em geral as mulheres, numa questão que, ainda hoje, é sensível e que é a da paridade. Estas são algumas das tarefas mais hercúleas que Guterres tem pela frente, onde, para as levar a cabo, necessita de conquistar o poder de um cargo desvalorizado e, atualmente, quase esvaziado de conteúdo.