ROGÉRIO ALVES

OS MEGAPROCESSOS

Há muito mais justiça para além dos famosos megaprocessos. Regra geral, porém, são estes que nos põem a falar dela, assim como quem fala sobre futebol. A discussão é laicizada, no sentido de que toda a gente tem a sua opinião, como tem os seus prognósticos e os seus desfechos favoritos.

Os megaprocessos, por definição, envolvem muita gente e gente conhecida, abordam uma suculenta e picante gama de assuntos e, à escala da sua dimensão, consomem brutais tempos de comunicação. Cada um deles alberga factos relevantes, distribui-os em fascículos cheios de pessoas famosas, o que, inevitavelmente, prende o interesse dos cidadãos, mesmo daqueles que sejam mais indiferentes. Veja-se, por exemplo, a expetativa criada em torno do celebérrimo processo “Marquês”, cuja procissão, já carregadinha de andores, ainda está mesmo só no adro. O anúncio reiterado de que o prazo do inquérito se aproximava do final, criou uma intensa expetativa, em razão dos protagonistas envolvidos, que desaguou, agora, num debate igualmente intenso, que, durante alguns dias, quase monopolizou os órgãos de comunicação social. Mas permitam-me, para já, retomar o pensamento de abertura: nem só de megaprocessos se faz a justiça. A justiça é um labor quotidiano, que opera desdobrado em múltiplos e variados setores. São os tribunais de família, são os tribunais do trabalho, são os tribunais administrativos e fiscais, são os tribunais de comércio, são os tribunais de causas cíveis, enfim, todo um sortido de matérias que, em conjunto, incluindo as execuções e os inquéritos criminais, superarão, largamente, os 2 milhões de processos.

 

Ausência crónica de previsão e de planeamento

Temos aqui, claramente, um problema de oferta e de procura. Os atrasos que se verificam com especial intensidade em alguns destes segmentos e, igualmente, em algumas comarcas (a troca dos nomes não resolve problemas), nascem de uma ausência crónica de previsão e de planeamento. Foram dados alguns passos muito positivos, mormente a utilização de ferramentas informáticas, de que o CITIUS é o exemplo máximo visível. Noto, porém, a talhe de foice, que o CITIUS só foi famoso quando não funcionou, o que denota a famosíssima propensão destrutiva do nosso debate público. No mais e para além de trocas constantes dos nomes (varas, juízos, instâncias médias, pequenas e grandes, círculos, circunscrições, etc.) e das turbulências tectónicas do flagelado mapa judicial, tem-se apostado, basicamente, em duas vias, para enxotar as pessoas dos tribunais e implementar velocidade nos processos: matar os recursos e aumentar as taxas. Ambas as coisas violam a Constituição, embora o Tribunal Constitucional possa achar que não. Nenhuma das coisas resultou em benefício da administração da justiça, pese embora o efeito que pode ter no embelezamento das estatísticas. Tudo isto nos deveria fazer pensar, como nos faz penar e, sobretudo, deveria fazer reagir. Reagir procurando fórmulas novas para problemas que são novos também. Por isso a abordagem sistemática destes temas é crucial num Estado de Direito, que se preocupa com o estado dos direitos. Mas, infelizmente, o escrutínio popular alimenta-se, basicamente, do caso concreto e, dentro deste vetor, dos casos criminais. É certo que, por vezes, um ou outro assunto consegue chamar a atenção dos cidadãos, vindo de fora desta esfera. Mas o julgamento do sistema continua a ser feito, em parte leonina, a partir das notícias sobre os chamados processos criminais. Sempre entendi como muito útil, que se procedesse a um debate alargado sobre o funcionamento do sistema judicial.

 

Reformatar o sistema

Estamos já bem dentro do século XXI, mas ainda não se reformatou o sistema às novas realidades, às novas intensidades e aos novos ritmos. Propus, até, que, para que esse debate se realizasse de forma tranquila, profunda e fecunda, se adotasse um formato do tipo usual nos retiros. Aí existiriam condições de serenidade, que o tornariam mais fecundo. Mais cedo ou mais tarde, teremos de realizar uma reflexão com estas características. Porém, enquanto o retiro é apenas miragem, o debate segue enviesado, panfletário e afunilado. Afunilado, precisamente, pela estreiteza imposta pelo caso concreto. Fala-se muito das árvores, mas não se fala da floresta. Panfletário porque se esgota, amiúde, numa espécie de disputa entre os bons e os maus, com aqueles a tentarem que os maus sejam castigados e os maus a tentarem ser absolvidos por entre truques, manobras, inoperâncias e prescrições. Enviesado quando realça, sobretudo, as perspetivas das entidades que operam no sistema, sem as caldear num diálogo mais amplo e participado pelo poder político e os parceiros sociais, centrado no que devem ser os desígnios nacionais em matéria de justiça. Tem de se começar por algum lado, sob pena de não irmos a lado nenhum. E já que o fascínio reside na temática penal, aproveitemos a embalagem, para fazer alguma pedagogia em vez da usual demagogia. Pensemos, por exemplo, nos limites a estabelecer à intrusão dos poderes na vida das pessoas. Pensemos na asfixia que os direitos, liberdades e garantias, pessoais e patrimoniais, estão a sofrer. Pensemos no restauro das ideias corretas que devem presidir à função judicial: um julgamento rápido, com todas as garantias de defesa e com um contraditório assegurado de facto. Só assim poderemos dormir descansados, na esperança de que o sistema que edificamos julga de forma a garantir que quem for culpado será condenado e quem for inocente será absolvido. Porque julgar não é condenar.