“TEMOS DE ADOTAR UM MODO DE VIDA E DE FUNCIONAMENTO DA SOCIEDADE COMPATÍVEL COM AS EXIGÊNCIAS DE UM REGIME MONETÁRIO AUSTERO”
Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e com um Mestrado em Filosofia pela Universidade Católica, Vítor Bento foi nomeado pelo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, membro do Conselho de Estado. Foi presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão de Crédito Público, diretor-geral do Tesouro, diretor do Departamento de Estrangeiro do Banco de Portugal, vogal no Conselho de Administração do Instituto Emissor de Macau e é actualmente presidente do Conselho de Administração da SIBS. Foi ainda presidente da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES) de maio de 2006 a abril de 2008. Analisando a crise que estamos a viver, este economista acredita que “a forma como a Europa está a lidar com esta crise deixa ainda algumas coisas a desejar”, isto porque, na sua opinião, não é possível recuperar a economia com uma abordagem “estruturalmente contracionista”. No caso de Portugal, Vítor Bento afirma que temos de ter a “capacidade de conseguir competitividade na economia sem depender das bengalas da inflação e da desvalorização”. Porém, tem consciência de que tal não vai acontecer facilmente, já que “o quadro mental de usar a inflação como escapatória para resolver as inconsistências das nossas escolhas continua muito presente nos decisores económicos e em muitos atores políticos”. “Temos de rever esse quadro e tornar a nossa economia flexível e competitiva”, conclui.
Disse, há cinco anos atrás, numa entrevista à FRONTLINE, que a crise que íamos atravessar ia ser muito semelhante à que passámos na década de 30. O que é que mudou de há cinco anos para cá?
A crise, de alguma forma, desencadeou-se há cinco anos atrás, quando eu já alertava para o que aí vinha. Normalmente era confrontado com reações de incredibilidade, e a conotação mais generosa que me faziam era a de Velho do Restelo. As pessoas não acreditavam, apesar de todas as evidências, que íamos ter pela frente uma crise muito violenta. O facto de ter sido em simultâneo com vários outros países acabou por criar sinergias que a intensificaram ainda mais. Basicamente, o que há de diferente hoje é que já estamos metidos na crise que, há cinco anos, era mais do que claro que iria existir, mas em que pouca gente acreditava e ninguém estava disposto a fazer algo para a evitar.
O que é que sentiu, como conselheiro de Estado, quando ouviu outro conselheiro – Marques Mendes – anunciar na televisão que estava para breve a convocação de um Conselho de Estado?
Senti que se tratou de uma atuação nada louvável. Eu acho que uma das coisas que nos faltam, às vezes, é o sentido da preservação das funções do Estado e de um certo recato daquilo que é institucional. Só o Presidente da República é que tem legitimidade para anunciar as convocações do Conselho de Estado, uma vez que é quem o representa diretamente. Sinceramente, não gostei dessa atitude, apesar de ter muita consideração por Marques Mendes.
Disse que estar no euro é “um desafio existencial”. Quais são as consequências se Portugal não conseguir cumprir esse desafio?
Nós temos de adotar um modo de vida e de funcionamento da sociedade que seja compatível com as exigências de um regime monetário austero, como é o regime monetário do euro. E as consequências de não o conseguirmos fazer levam-nos a ter pela frente um empobrecimento relativo, sem podermos satisfazer todas as aspirações sociais da sociedade, nem tirar todo o potencial da economia, e esse é o grande risco.
A Europa deve mudar as suas políticas para garantir que os países sob assistência consigam ter sucesso nos seus programas?
A forma como a Europa está a lidar com esta crise deixa ainda algumas coisas a desejar. Eu percebo que, pela natureza da crise e pela forma como ela se revelou, teria sido difícil para as autoridades europeias antecipá-la, em toda a sua extensão e em toda a sua complexidade, e acima de tudo, o quadro, quer mental quer institucional, em que funcionava a zona euro não contemplava uma crise desta natureza. Por conseguinte, não havia mecanismos de resposta a uma crise destas e por isso começaram a fazer-se algumas coisas erradas, que depois foram sendo corrigidas. Neste momento, o risco maior é o facto de não se perceber e atuar perante o conhecimento de que esta é uma crise com componentes sistémicas. Isto é, há uma abordagem demasiado casuística na resolução dos problemas individuais, quando a sua soma cria um problema com uma natureza diferente, uma natureza sistémica. Como tal, precisa de uma reação sistémica. É verdade que a receita do ajustamento e da austeridade, com contenção da procura interna, é adequada a cada um dos países por si, mas se todos ao mesmo tempo contiverem a procura interna, não há possibilidade de haver crescimento porque não há nenhuma fonte de crescimento. Isto porque a procura interna de uns é a procura externa de outros. Individualmente, em cada país, é acertado reduzir a sua procura interna e procurar estimular a sua procura externa, contudo, se não houver outros a estimular a procura interna, não se gera procura externa. A Europa, como um todo, tem de ter uma abordagem que não seja estruturalmente contracionista.
A renegociação do memorando não será inevitável a breve prazo?
Tanto quanto eu julgo saber, o memorando tem vindo a ser renegociado, porque esse processo é dinâmico e já houve várias adaptações face ao original. Desde os prazos para o ajustamento dos défices, aos próprios níveis dos défices, desde as taxas de juro e prazos de amortização da dívida oficial e outros componentes do processo de ajustamento, tudo isso tem vindo a ser renegociado, portanto, a renegociação faz parte da dinâmica do próprio processo. Julgo que à volta da ideia de renegociação se criou uma expectativa fantasista de convencer os credores a deixarem-nos continuar a vida que tínhamos sem termos de ajustar. Quando se utiliza demasiado o mantra da renegociação, está-se a projetar uma expectativa fantasista para nos livrarem do ajustamento, e isso não vai acontecer.
Quais são os principais desafios que se colocam a Portugal neste momento?
Nós temos dois grandes desafios, de duas naturezas. Do ponto de vista estrutural, temos que tornar a nossa forma de funcionamento compatível com os requisitos do sistema monetário do euro, que é um regime que está apontado para a estabilidade de preços e que tende a gerar uma moeda forte. Isto significa que temos de ter a capacidade de conseguir competitividade na economia sem depender das bengalas da inflação e da desvalorização, porque o regime não vai produzir isso, o que implica alterar quadros mentais, por parte dos decisores. O quadro mental de usar a inflação como escapatória para resolver as inconsistências das nossas escolhas continua muito presente nos decisores económicos e em muitos atores políticos. Temos de rever esse quadro e tornar a nossa economia flexível e competitiva, o que não é fácil, porque implica a alteração de comportamentos e de processos deliberativos. (…)