“O SETOR PRIVADO É INDISPENSÁVEL. O ESTADO, POR SI SÓ, NÃO TEM CAPACIDADE PARA DAR RESPOSTA À DIMENSÃO DO PROBLEMA HABITACIONAL QUE ENFRENTAMOS”
Hugo Santos Ferreira assinala 10 anos à frente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), destacando a profissionalização, internacionalização e responsabilidade social do setor imobiliário. “Quando assumi a liderança da APPII, o setor era frágil, pouco estruturado”, relembra. Hoje, é competitivo e alinhado com padrões internacionais. Defende que “o imobiliário não é apenas uma atividade económica. É uma missão social.”
A aposta na internacionalização foi essencial: “Cerca de 50% dos nossos associados são investidores estrangeiros.” No entanto, critica o fim dos vistos gold e a instabilidade fiscal, alertando: “O investimento é sensível ao risco político e fiscal.” Propõe a redução do IVA para 6% na habitação, simplificação dos licenciamentos e estabilidade legislativa.
Sobre a crise habitacional, afirma: “Sem o setor privado, não há volume, nem velocidade, nem inovação.” Apela à descentralização do investimento e à valorização das cidades intermédias. O arrendamento também exige medidas: “Mudámos a lei 10 vezes em 10 anos. Isso afasta os proprietários.” Reforça ainda o compromisso com a sustentabilidade: “Hoje, qualquer projeto tem de incorporar critérios ambientais.”
Conclui com um apelo: “Estamos prontos. Falta o país decidir se quer aproveitar essa oportunidade.”
QUAIS FORAM OS PRINCIPAIS DESAFIOS QUANDO ASSUMIU A LIDERANÇA DA APPII?
Quando assumi a presidência da APPII, o setor ainda vivia as consequências da crise financeira de 2008. Era um setor frágil, pouco estruturado e ainda sem uma voz institucional forte. A minha prioridade foi dar-lhe essa voz, reforçar a representatividade da associação e trabalhar para a credibilização do setor junto da sociedade e dos decisores políticos. Ao longo desta década, enfrentámos momentos difíceis, mas também conseguimos evoluir. A APPII tornou-se uma referência nacional e internacional, com capacidade de influência real nas políticas públicas e nos grandes debates sobre urbanismo, habitação e investimento. Foi um trabalho de construção institucional, de diálogo constante com o poder político e com os nossos associados, e de defesa de uma visão moderna e responsável do imobiliário.
COMO AVALIA A TRANSFORMAÇÃO QUE O SETOR SOFREU NOS ÚLTIMOS ANOS?
A transformação foi profunda. Quando começámos, a promoção imobiliária ainda era, em muitos casos, uma atividade informal, sem exigência técnica nem planeamento estratégico. Hoje, o setor é altamente profissionalizado, competitivo, transparente e alinhado com os standards internacionais. A mudança não foi apenas técnica ou legal – foi sobretudo cultural. Hoje falamos de sustentabilidade, de ESG (Environmental, Social and Governance), de eficiência energética, de mobilidade, de responsabilidade social. Os promotores imobiliários deixaram de ser vistos como especuladores e passaram a ser agentes de desenvolvimento urbano e económico.
A INTERNACIONALIZAÇÃO FOI DECISIVA PARA ESSA MUDANÇA?
Sem dúvida. Fomos pioneiros na aposta na internacionalização do setor e essa estratégia revelou-se fundamental. Atualmente, cerca de 50% dos nossos associados são investidores estrangeiros, oriundos de países como os Estados Unidos, Brasil, Reino Unido ou Emirados Árabes Unidos. Abrimo-nos ao mundo, levámos o nome de Portugal às principais feiras e eventos internacionais e mostramos que somos um destino atrativo, com qualidade, estabilidade e talento. Essa aposta trouxe capital, novas práticas, mais exigência e mais rigor. E posicionou Portugal como uma referência no mapa do investimento imobiliário global.
O SETOR TEM UMA MISSÃO SOCIAL, PARA ALÉM DO RETORNO ECONÓMICO?
Absolutamente. Sempre defendi que o imobiliário não é apenas uma atividade económica. É uma missão social. Estamos a construir as casas onde as pessoas vivem, os espaços onde trabalham, os bairros onde crescem as famílias. Temos uma responsabilidade enorme na forma como moldamos as cidades e na qualidade de vida que proporcionamos. Por isso, temos de agir com responsabilidade, com ética e com sentido de futuro. O setor tem de estar ao serviço da coesão social, da inclusão e da sustentabilidade. E isso implica planeamento urbano de qualidade, soluções de habitação para todos os segmentos da população e compromisso com o território.
QUE PAPEL DEVE TER O SETOR PRIVADO NO COMBATE À CRISE HABITACIONAL?
O setor privado é indispensável. O Estado, por si só, não tem capacidade para dar resposta à dimensão do problema habitacional que enfrentamos. Sem o setor privado, não há volume, nem velocidade, nem inovação suficientes para responder à procura. Temos de ser vistos como parceiros e não como adversários. Sempre defendi que é com diálogo, com estabilidade e com políticas públicas inteligentes que conseguimos atrair investimento e gerar mais oferta. E isso passa por criar um quadro fiscal amigo da habitação, regras claras, licenciamento célere e segurança jurídica.
O FIM DOS VISTOS GOLD E A ALTERAÇÃO AO REGIME FISCAL FORAM PREJUDICIAIS?
Foram medidas mal pensadas e mal comunicadas. Os vistos gold e o regime de residentes não habituais não eram apenas instrumentos de captação de investimento – eram instrumentos de recuperação urbana e de internacionalização da economia. A reabilitação dos centros históricos de cidades como Lisboa, Porto, Braga ou Coimbra deve-se em grande parte ao investimento captado através desses mecanismos. Retirar essas ferramentas sem uma alternativa credível foi um erro estratégico. Perdeu-se investimento, confiança e reputação internacional. E o setor ressentiu-se, naturalmente.
A ESTABILIDADE FISCAL É DECISIVA PARA ATRAIR INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO?
É absolutamente decisiva. Nenhum investidor, nacional ou estrangeiro, aplica capital num setor em que as regras mudam todos os anos. O imobiliário trabalha com horizontes de cinco, dez, quinze anos. Precisamos de um ambiente fiscal previsível, estável e coerente. Infelizmente, Portugal tem falhado nesse ponto. Alterações repentinas, medidas avulsas e anúncios contraditórios minam a confiança e afastam investimento. Temos de parar com a ideia de que o setor aguenta tudo. O investimento é sensível ao risco político e fiscal. E não há investimento imobiliário sério sem estabilidade a longo prazo.
A CARGA FISCAL SOBRE A HABITAÇÃO EM PORTUGAL É DEMASIADO ELEVADA?
É insustentável. Portugal tem uma das maiores cargas fiscais da Europa sobre a construção de habitação. Cerca de 40% do preço final de uma casa são impostos. Isso significa que, mesmo com margens reduzidas, é impossível construir habitação acessível com este modelo fiscal. É urgente rever a estrutura tributária da habitação. Temos de reduzir o IVA para 6% na construção de habitação nova, eliminar taxas e encargos excessivos e simplificar os processos. Caso contrário, vamos continuar a excluir a classe média do mercado e a alimentar a crise habitacional.
A PROPOSTA DE REDUZIR O IVA NA HABITAÇÃO JÁ TEVE ABERTURA POLÍTICA?
Temos feito esse caminho junto dos partidos políticos e do Governo. Em algumas frentes há sensibilidade para a questão, mas falta coragem para concretizar. A redução do IVA seria uma medida estrutural, com impacto direto nos preços e com retorno garantido em mais construção, mais emprego e mais receita indireta. Outros países já o fizeram. Espanha, França, Itália, aplicam taxas reduzidas em segmentos específicos da habitação. Não faz sentido que Portugal, com um dos maiores défices habitacionais da Europa, continue a taxar a construção como se fosse um luxo.
OS LICENCIAMENTOS URBANÍSTICOS CONTINUAM A SER UM BLOQUEIO À NOVA CONSTRUÇÃO?
Sem dúvida. Este é um dos maiores problemas que enfrentamos. Um projeto pode demorar três, quatro ou cinco anos a obter aprovação. Isso paralisa o investimento, encarece os projetos e retira previsibilidade ao mercado. É urgente reformar os processos de licenciamento. Precisamos de prazos legais obrigatórios, decisões automáticas quando os prazos não são cumpridos e digitalização total dos procedimentos. Temos de passar do papel para as plataformas digitais, com transparência e responsabilização.
HÁ EXEMPLOS INTERNACIONAIS QUE DEVÍAMOS SEGUIR NESTA ÁREA?
Claro. Basta olhar para países como os Países Baixos, a Irlanda ou a Finlândia. Nestes mercados, os licenciamentos têm prazos definidos, são analisados em plataformas digitais integradas e as entidades têm responsabilidade direta nas decisões. Portugal não pode continuar a ser um país onde tudo é adiado. A imprevisibilidade nos licenciamentos é um dos maiores entraves ao investimento. E sem investimento não há construção. É tão simples quanto isso.
A NOVA POLÍTICA DE SOLOS PODE RESOLVER PARTE DO PROBLEMA?
É um passo positivo, mas não chega. A criação de mais solo urbano é importante, mas se não resolvermos os problemas de licenciamento, fiscalidade e planeamento, vamos continuar a ter solo disponível, mas inativo. É preciso integrar esta política numa visão global. Temos de identificar zonas prioritárias para desenvolvimento, garantir infraestruturas básicas, atrair investimento e promover a coesão territorial. Só assim a política de solos terá impacto real.
PORTUGAL CONTINUA A SER ATRATIVO PARA INVESTIDORES INTERNACIONAIS?
Portugal tem condições únicas: segurança, clima, localização, qualidade de vida. Mas tudo isso só vale se houver estabilidade, previsibilidade e racionalidade política. Nos últimos anos, enviámos sinais contraditórios para os mercados. Perdemos investimento por causa disso. Temos de recuperar a confiança. E isso passa por uma política fiscal estável, por respeito pelos contratos, por regras claras e duradouras. O capital internacional quer investir cá – mas exige regras claras. E é isso que temos de garantir.
A DESCENTRALIZAÇÃO É ESSENCIAL PARA RESOLVER OS DESEQUILÍBRIOS NO TERRITÓRIO?
Sim, é um dos grandes desafios do país. Temos de descentralizar o investimento e o crescimento económico. Não podemos continuar a concentrar tudo em Lisboa e no Porto. Existem cidades intermédias e regiões do interior com enorme potencial, mas que precisam de investimento, planeamento e serviços públicos de qualidade. É nas cidades médias que podemos garantir habitação acessível, mobilidade mais fácil, melhor qualidade de vida. Se criarmos as condições certas, conseguimos atrair empresas, talento, jovens casais e novas famílias. A descentralização é uma oportunidade, não apenas uma necessidade.
QUE FATORES SÃO FUNDAMENTAIS PARA TORNAR O INTERIOR MAIS COMPETITIVO?
Temos de investir em infraestruturas, saúde, educação, mobilidade, habitação. O interior só será competitivo se oferecer qualidade de vida semelhante às grandes cidades. Isso implica políticas públicas coordenadas e um verdadeiro compromisso nacional. Também é preciso que os municípios sejam proativos. Têm de promover o seu território, simplificar os seus processos, oferecer incentivos e ter planos de urbanismo modernos. O investimento privado só chega onde há visão e estabilidade.
A CRISE DO ARRENDAMENTO PODE AGRAVAR-SE SEM MEDIDAS ESTRUTURAIS?
Pode e vai agravar-se se não fizermos nada. O mercado de arrendamento em Portugal está bloqueado por instabilidade legislativa e desconfiança. Mudámos a lei 10 vezes em 10 anos. Isso afasta os proprietários e inibe a oferta. Precisamos de estabilidade legal, contratos protegidos, justiça célere e incentivos fiscais. O arrendamento é fundamental para jovens, para mobilidade laboral, para quem não quer ou não pode comprar. Temos de garantir que seja uma opção viável e segura para todos os intervenientes.
A FISCALIDADE PODE AJUDAR A RESOLVER ESTE PROBLEMA?
Claro que sim. A fiscalidade pode ser uma ferramenta muito eficaz para expandir a oferta de arrendamento. Quem coloca imóveis no mercado a preços acessíveis deve ser premiado. Temos de diferenciar fiscalmente quem contribui para o bem público. Defendo benefícios concretos: redução de IMI, IRS sobre rendas bonificado, isenções temporárias em contratos de longa duração. E, acima de tudo, segurança jurídica. Só com previsibilidade os proprietários e investidores colocam imóveis no mercado.
O SETOR ESTÁ COMPROMETIDO COM A SUSTENTABILIDADE?
Está e quer liderar essa transição. Hoje em dia, qualquer projeto tem de incorporar critérios de sustentabilidade. Os investidores já exigem isso, os clientes também. Não se trata de uma moda, é uma exigência de mercado e uma responsabilidade social. Estamos a apostar em edifícios eficientes, em reabilitação urbana, em mobilidade sustentável, em espaços verdes. O imobiliário tem de ser parte da solução para os desafios ambientais. E Portugal tem uma oportunidade para se posicionar como referência nesta área.
O PLANEAMENTO URBANO PODE AJUDAR A PROMOVER CIDADES MAIS SUSTENTÁVEIS?
Sem dúvida. Precisamos de planos diretores municipais que incentivem a reabilitação, que privilegiem a densificação inteligente, que criem cidades compactas, mistas e com qualidade de vida. O urbanismo tem um papel crucial na sustentabilidade ambiental, social e económica. Devemos planear para as pessoas, e não apenas para os carros ou para os índices de construção. Uma cidade bem planeada atrai investimento, gera inclusão e melhora o bem-estar dos seus habitantes. E isso começa no desenho do território.
QUAL É A MENSAGEM FINAL QUE DEIXA PARA O FUTURO DO SETOR?
A minha mensagem é de compromisso. O setor imobiliário está disponível para ser parte da solução. Queremos trabalhar com o Estado, com as autarquias, com a sociedade civil. Queremos ajudar a resolver o problema da habitação, regenerar as cidades, dinamizar a economia. Mas precisamos de estabilidade, visão e coragem política. Se houver condições, o setor responde. Temos capacidade, know-how, investimento e vontade. Estamos prontos. Falta o país decidir se quer aproveitar essa oportunidade.