GERMANO DE SOUSA

UMA EXPERIÊNCIA DE VIDA AO SERVIÇO DA SAÚDEPatologista clínico por vocação, Germano de Sousa é o fundador e administrador do Grupo Germano de Sousa e conta, neste seu império, com o apoio dos seus dois filhos, Maria José e José Germano, igualmente médicos patologistas. “Para que não haja dúvidas e para que fique claro, nós somos um grupo nacional, um grupo médico português de capital única e exclusivamente português, ou se quiser única e exclusivamente meu e dos meus filhos, mais ninguém. Não dependemos de estrangeiros, não dependemos de fundos, não dependemos de private equities, não estamos reféns de ninguém”, referiu. Com uma vida dedicada a fazer a “ponte entre a ciência médica e a prática clínica”, Germano de Sousa destaca a importância da Patologia Clínica no universo da Medicina: “é, tal como o nome indica, uma especialidade profundamente clínica e imprescindível para todas as outras especialidades da Medicina, enriquecendo com a sua contribuição a relação médico-doente quer a nível hospitalar quer ambulatório”.  Quando questionado sobre a possibilidade de ter conseguido, através da sua experiência na Medicina Laboratorial, prever uma situação pandémica como a que estamos a viver hoje, o patologista clínico – que também lidou de muito perto com a pandemia da Gripe A (H1N1) de 2009 – afirmou que era fácil perceber que “podia surgir de novo, provocada por outro e qualquer vírus”. Infelizmente, o pior cenário veio a confirmar-se e, “não fossem todas as armas científicas, designadamente os testes moleculares e as vacinas, que pudemos utilizar e ainda utilizamos, com uma eficácia extrema na luta contra esta pandemia, e o número de mortos aproximar-se-ia aos da Pneumónica de 1918”, concluiu. Disponível para se posicionar sempre na linha da frente para responder aos novos desafios das doenças da humanidade, o administrador do Grupo Germano de Sousa acredita que, num futuro próximo, seremos capazes de oferecer “um sistema de saúde digital centrado no doente e a ele ligado”, onde os prestadores de saúde “fornecerão o suporte e as ferramentas eletrónicas (apps, sensores, etc.) necessárias para gerir digitalmente a sua saúde e a doença, mediante Medicina Baseada em Dados”.  

QUANDO VEIO DOS AÇORES ESTUDAR MEDICINA PARA COIMBRA, SENTIA ENTÃO, PELA SUA VOCAÇÃO E OBJETIVO DE VIDA, QUE VIRIA A ALCANÇAR COMO MÉDICO A POSIÇÃO DE DESTAQUE QUE HOJE TEM NA SAÚDE DOS PORTUGUESES? 

A um miúdo de 17 anos são permitidos todos os sonhos do mundo. Ainda mais para um ilhéu para o qual o mar era, por vezes, uma prisão, mas quase sempre o infinito, e quando se cresce rodeado de infinito sonha-se muito! Porém o único desejo que tinha quando iniciei o curso de Medicina era ser médico e poder vir a ser útil aos outros. 

PATOLOGIA CLÍNICA É UMA ESPECIALIDADE DA QUAL O PROFESSOR FOI O PRINCIPAL MENTOR NA SUA INTRODUÇÃO COMO ESPECIALIDADE MÉDICA NO NOSSO PAÍS. O QUE O LEVOU A SENTIR ESSA NECESSIDADE? 

Fui médico militar em Angola, num hospital de frente durante dois anos. Aí, tive de lidar com todo o tipo de situações clínicas, desde medicina de guerra ao dia a dia normal de um médico generalista. Como tinha feito um estágio prévio no Laboratório do Hospital Militar de Luanda, fiquei também com o laboratório a meu cargo. Ficou-me o “bichinho” da medicina laboratorial e da relação desta com a clínica. No ano em que regressei da guerra tinham pela primeira vez aberto os internatos da especialidade. Obtive uma excelente classificação no teste baseado no tratado de medicina do Harrison, que para efeitos de classificação começou então a ser utilizado pela primeira vez. Podia ter escolhido qualquer especialidade que quisesse, mas o “bichinho” falou mais alto e optei pela especialidade de Análises Clínicas, como era então designada a área da Medicina Laboratorial. Depressa me apercebi de que o curriculum da especialidade necessitava de ser mudado, atualizado, acompanhando o que de melhor se fazia na Europa e nos Estados Unidos. Devo aqui prestar homenagem à memória do Dr. António Pedro Franco, meu chefe de serviço e meu mestre na aprendizagem da especialidade, que tinha estagiado em Boston no laboratório de um dos ícones da hematologia mundial, o Dr. William Dameshek. Com ele confirmei o que já sabia através dos artigos científicos que lia e mais certo fiquei de que todo o nosso programa de ensino e o papel do especialista deviam ser de imediato revistos. Assim, quando acabei a especialidade, decidi meter mãos á obra. Com a ajuda do meu colega e querido amigo, infelizmente já falecido, António Forte Vaz, corremos o país inteiro, falando com todos os colegas da mesma especialidade e convencendo-os de que era altura de tudo mudar. Essa diligência culminou em Lisboa, no I Encontro de Medicina Laboratorial, em 17 e 18 de Junho de 1978. Aí foram abordados, em debate aberto, a definição do conceito e âmbito da especialidade no quadro das ciências médicas, a necessidade de se dar corpo ao respetivo colégio da especialidade no âmbito da Ordem dos Médicos. Aí também eu e o Forte Vaz apresentámos e fizemos aprovar um curriculum detalhado para a formação do especialista, completamente inovador e a cumprir em quatro anos. Aprovada foi também a nova designação de Patologia Clínica para a esta especialidade, à maneira do que acontecia em muitos países anglo-saxónicos e não só. Em consequência de todo este esforço, a Portaria 357/80 de 28 de junho consignou o reconhecimento oficial da Patologia Clínica e do Patologista Clínico. Foi assim que aconteceu! Na realidade, e como bem pergunta, fui não apenas o mentor, como também o fautor desta especialidade. 

QUAL A RAZÃO QUE O LEVOU A ABRAÇAR ESTA ESPECIALIDADE? TINHA NO SEU PENSAMENTO E CONHECIMENTO QUE SERIA UMA ÁREA QUE ESTARIA SEMPRE NO TOPO DA LIDERANÇA DA CIÊNCIA MÉDICA? 

Desde que fui para Medicina e em especial a partir do 2.º ano, sempre fui um aluno muito interessado nos mecanismos bioquímicos e fisiopatológicos da doença. Fui o melhor aluno do meu curso em Química Fisiológica e em Semiologia Laboratorial. Devo confessar que no fim do curso ainda pensei ser neuropsiquiatra. Atraído pelas aulas de um dos mais notáveis mestres que tive, o Prof. António Nunes Vicente, estagiei no Serviço de Neuropsiquiatria que ele dirigia em Celas. Depois quando a Pide me proibiu de fazer o internato nos HUC e me negou o lugar de assistente para que fui convidado por ele, para que eu não ficasse desempregado, levou-me para a sua clínica privada onde trabalhei até ser chamado para o serviço militar. Era um grande médico e um grande Senhor que jamais esquecerei. Mas a vida dá muitas voltas. O meu contacto e trabalho durante dois anos nos laboratórios dos dois hospitais militares levaram-me, como contei, ao primeiro amor, a Medicina Laboratorial. Na realidade sempre soube que Patologia Clínica seria, tal como agora é, a especialidade médica que não só acompanha a par e passo os avanços de todas as outras especialidades como tem largamente contribuído para uma remodelação dos conceitos fisiopatológicos que explicam inúmera patologia. Pela evolução que têm vindo a sofrer as ciências básicas que suportam o desenvolvimento tecnológico dos meios que utiliza e pelo aprofundamento das disciplinas próprias, como Patologia Química, Imunopatologia, Hematopatologia, Microbiologia Clínica, Biologia e Patologia Moleculares e Genómica, é hoje uma especialidade fulcral, que contribui constantemente para o despiste, diagnóstico, prognóstico ou monitorização da terapêutica em todas as doenças.  

Aliás, o desenvolvimento de conhecimentos nesta área tornou-se de tal modo explosivo que é impossível às restantes especialidades abrangerem todas as potencialidades diagnósticas de muitos dos exames que estão à disposição dos seus doentes, sendo por isso fundamental o contributo do médico patologista clínico, o qual não se limita a utilizar bem as técnicas laboratoriais. Além de dominar o laboratório, sabe de Fisiopatologia e Clínica. Conjuga e integra estes saberes num conjunto de conhecimentos fundamentais ao diagnóstico clínico-laboratorial, interpretando com minúcia os resultados que o laboratório faculta, propondo investigações complementares, colaborando de forma decisiva para o diagnóstico, contribuindo em suma e muito de perto para o bem-estar do doente. O patologista clínico é pois, e antes de mais, um clínico que alia o conhecimento médico à experiência na execução dos exames laboratoriais, assumindo assim o papel de ponte entre a ciência médica e a prática clínica. Patologia Clínica é, tal como o nome indica, uma especialidade profundamente clínica e imprescindível para todas as outras especialidades da Medicina, enriquecendo com a sua contribuição a relação médico-doente, quer a nível hospitalar quer ambulatório. O lado humanístico da Medicina não se define pelo facto de haver ou não contacto direto com os doentes. Define-se antes pela capacidade de dedicação do médico à resolução dos problemas do doente. A obtenção e valorização dos dados laboratoriais não é um fim em si mesmo. Tudo o que fazemos nesta especialidade tem como fim o homem doente e o seu bem-estar.  

Hipócrates, nos “Preceitos”, afirmou que “onde há phylantropia (amor pelo homem enquanto ser humano), há também philotekhnia (amor pela técnica ou arte de curar)”. À luz deste binómio o patologista entende que o escopo do seu saber não são doenças abstratas, mas sim pessoas doentes, pessoas que são únicas e irrepetíveis, que sofrem e vivem situações de desespero. É este amor pelo homem enquanto ser total, biológico e espiritual, que enforma a profissão médica, seja qual for a perspetiva em que esta se coloque. É isso que diariamente faz e sente o patologista clínico. 

ALGUMA VEZ CONSEGUIU PERSPETIVAR, ATRAVÉS DA SUA EXPERIÊNCIA NA MEDICINA LABORATORIAL COMO MÉDICO PATOLOGISTA, QUE PODÍAMOS VIR A TER DE ENFRENTAR UMA SITUAÇÃO PANDÉMICA COMO A QUE ESTAMOS A VIVER HOJE?  

Lidei muito de perto com a pandemia da Gripe A (H1N1) de 2009. Já então o meu laboratório, tal como hoje, trabalhando 24/24 horas, realizou uma parte substancial dos testes PCR, necessários ao diagnóstico e às medidas de contenção epidemiológica necessárias a todo o país. Como é evidente sabia que outra pandemia podia surgir de novo provocada por outro e qualquer vírus. Tal infelizmente aconteceu, e como antes, eu e toda a minha gente estivemos de novo no “olho do furacão”, trabalhando de novo 24/24 horas desde março de 2020. Não fossem todas as armas científicas, designadamente os testes moleculares e as vacinas, que pudemos utilizar e ainda utilizamos, com uma eficácia extrema na luta contra esta pandemia, e o número de mortos aproximar-se-ia dos da Pneumónica de 1918. Há também um outro aspeto que me preocupa e nos diz respeito: as alterações climáticas e a subida gradual da temperatura criarão um caldo de cultura que poderão transformar o Sul do país num paraíso para o mosquito Aedes aegipci, que, tal como acontece em muitos países tropicais, se encarregará de transmitir o vírus do Dengue, do Zica e de outros vírus. Isto, claro, sem contar com a possibilidade de o mosquito Anopheles reaparecer trazendo com ele o Plasmodium falciparum e os outros plasmódios. Urge pensar nesse facto iniludível.  

MÉDICO, DIRETOR CLÍNICO E GESTOR, CONSTRUIU O GRUPO GERMANO DE SOUSA COM OS SEUS DOIS FILHOS MARIA JOSÉ E JOSÉ GERMANO, IGUALMENTE MÉDICOS PATOLOGISTAS CLÍNICOS. QUAL O VALOR QUE ESTA UNIÃO LHE TRAZ COMO SUPORTE DO SUCESSO ATINGIDO? 

No man is an island”. Ninguém faz nada realmente importante sozinho. Muito menos quando sabe que tem a seu lado filhos que, pela sua vocação, formação, carácter e tenacidade excecionais, partilham com o pai o mesmo gosto pela especialidade e a mesma vontade e visão do futuro deste grupo de Medicina Laboratorial que, de início eu e depois os três, construímos. Sem este sentido de família nada disto teria sido possível. São eles que me dão força e gosto para continuar a dedicar-me com alegria a esta instituição. Doutro modo talvez já me tivesse reformado ou considerado até alienar o Grupo. Porém, com eles tudo é possível e continuaremos numa senda de desenvolvimento e dedicação ao bem-estar dos doentes que nos procuram e apoiando no diagnóstico a difícil tarefa diária dos colegas que em nós confiam. Justíssimo é também reconhecer que nada seria possível sem a notável e dedicada equipa de colaboradores, médicos, biólogos, farmacêuticos, técnicos de laboratório, informáticos, comerciais, gestores financeiros e de pessoal, contabilistas, administrativos e rececionistas, motoristas e outros, que fazem desta casa uma família coesa em que todos se respeitam e unidos lutam, mesmo em tempos adversos, para todos os dias darem ao doente o melhor do seu saber e experiência. Termino esta resposta como comecei citando o poeta inglês da Renascença, John Donne: No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main. 

QUE FORÇA E VALORES VÊ NA SUA ORGANIZAÇÃO FAMILIAR PARA ENFRENTAR OS DESAFIOS DO FUTURO? 

No início do século, em 2003, sem garantias de estabilidade na continuação das convenções por parte do Ministério da Saúde e com dificuldades económicas acrescidas, a grande maioria dos profissionais detentores de pequenos e médios laboratórios e até mesmo grandes laboratórios não tiveram a força anímica e financeira necessária para resistir à investida que grupos financeiros, de capital de risco, ou fundos muito poderosos, fizeram no setor, e em poucos anos a grande maioria destas unidades foi vendida a esses grupos, desaparecendo todo um setor nacional que honrava Portugal e que passou para mãos externas, perante a indiferença de quem mandava no nosso país. Também fui abordado nesse sentido. Porém – com o acordo e apoio constante e inultrapassável dos meus dois filhos, já então recém-patologistas – decidi enfrentar essa investida e manter-me independente. Não podia ser incongruente com os princípios que sempre tinha defendido enquanto fui bastonário da Ordem dos Médicos. Para isso ser possível, para fazer frente à nova realidade, era necessário que o laboratório crescesse e se estendesse a todo o país para concentrar os exames em dois polos principais, Lisboa e Porto, de forma a podermos sobreviver financeiramente. Assim o fizemos e soubemos encontrar soluções para resistir. Foi uma difícil mas digna caminhada e assim, pouco a pouco, criámos o Grupo Germano de Sousa que integra e gere laboratórios do Porto a Tavira. A insistência em manter o laboratório e o Grupo como uma unidade detida e gerida por médicos foi inspiradora. A nossa essência é isso, é sermos um grupo de médicos que colocam os seus deveres éticos e deontológicos acima de qualquer outra consideração, designadamente económica, e cuja única obrigação é para com o doente. E essa obrigação consubstancia-se numa palavra: exercer com grande qualidade. Qualidade na tecnologia utilizada, qualidade no background e formação académica do excecional grupo de colaboradores que temos, qualidade no atendimento dos doentes, qualidade na execução dos exames e testes, qualidade na interpretação dos resultados e na informação e apoio prestado aos nossos colegas clínicos. Por outro lado, estamos constantemente atentos à inovação e à evolução da ciência médica em todas as suas especialidades. Tem sido esta aposta constante na excelência e no profissionalismo que tem merecido a confiança de médicos e doentes e explica o modo como o Grupo e os seus laboratórios se afirmaram no mundo da saúde, designadamente junto de outros grupos nacionais, como é o caso do Grupo CUF, referência de qualidade na prestação de cuidados de saúde que nos honrou ao escolher-nos como parceiro na área da Medicina Laboratorial. 

POSSUI HOJE UM GRUPO COM TRÊS LABORATÓRIOS CENTRAIS, SEIS PERIFÉRICOS, TRÊS DE APOIO À URGÊNCIA HOSPITALAR, UM LABORATÓRIO DE ANATOMIA PATOLÓGICA E UM IMPORTANTE LABORATÓRIO DE GENÉTICA, ALÉM DE INÚMEROS PONTOS DE RECOLHA DE PRODUTOS BIOLÓGICOS, COBRINDO TODO O PAÍS E CONSTITUINDO UM SERVIÇO DE PONTA EM TERMOS DE DESENVOLVIMENTO MÉDICO, CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO INSUPERÁVEL NO NOSSO PAÍS. QUE RELEVÂNCIA DÁ AO FACTO DE SER UM GRUPO DE LABORATÓRIOS NACIONAL, PROPRIEDADE EXCLUSIVA DE MÉDICOS E 100% PORTUGUÊS?  

Para que não haja dúvidas e para que fique claro, nós somos um grupo nacional, um grupo médico português de capital única e exclusivamente português, ou se quiser única e exclusivamente meu e dos meus filhos, mais ninguém. Não dependemos de estrangeiros, não dependemos de fundos, não dependemos de private equities, não estamos reféns de ninguém. Eu, que fui bastonário da Ordem dos Médicos, prezo muito a minha profissão e tal como os meus filhos, que são patologistas clínicos também, exercemos a nossa profissão de acordo com as regras deontológicas da nossa profissão, tendo sempre o doente, e não o lucro, como nossa primeira preocupação. Os nossos lucros, que os temos naturalmente, são reinvestidos nesta casa, que é conhecida por ser um porto seguro, com nova tecnologia, um local de ponta da medicina portuguesa. Nesta casa onde se faz ensino, somos um polo de ensino da Nova Medical School, e também da Universidade Católica, e aqui damos aulas, e aqui fazemos ensino pré e pós-graduado, designadamente internato da especialidade, sem com isso sermos compensados. Fazemo-lo com vontade, porque assim entendemos que é uma missão que devemos à Res Publica. Portanto, para que fique claro como a água, somos o único grupo médico nacional de Medicina Laboratorial detido exclusivamente por médicos portugueses.  

O PROFESSOR FOI UM DOS PRECURSORES DA IMPLEMENTAÇÃO DO SISTEMA CONVENCIONADO NO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE. SEI QUE DEBATEU ENTÃO COM ANTÓNIO ARNAUT ESSE E OUTROS ASPETOS RELATIVOS AO SNS. QUAL FOI A SUA IMPORTÂNCIA NAS CONVENÇÕES PARA A VIABILIDADE DO SNS? 

Tive a honra e o gosto de, enquanto jovem médico, debater em 1978, com o saudoso Dr. António Arnaut, dentro do Partido Socialista e não só, as primeiras ideias que ele teve sobre a necessidade urgente de criar um Serviço de Saúde universal e gratuito. Ele, eu e muitos outros tínhamos a noção de que as estruturas criadas na reforma de 1971, da autoria do então ministro Baltazar Rebelo de Sousa e do seu secretário de Estado Gonçalves Ferreira, embora representassem um bom princípio, eram ainda insuficientes para o fim justíssimo pretendido pelo Dr. Arnaut. Foi então que surgiu a ideia de, à maneira da França, da Bélgica, da Alemanha e de outros países, e quando a lei que instituísse o Serviço Nacional de Saúde fosse publicada, se recorrer a um modelo de convencionamento com as clínicas, médicos privados nos seus consultórios e outras estruturas médicas privadas então existentes. Ideia essa que foi bem aceite quer pelo próprio Dr. Arnaut quer pelos outros participantes. Havia que pô-la em marcha pois só assim se cumpriria o consignado no artigo 64.º da Constituição aprovada em 1976. Quando em julho de 1978 é publicado o despacho ministerial conhecido como Despacho Arnaut, que abria o acesso a todos os cidadãos aos Serviços Médico-Sociais criados pela Reforma de 1971, começaram a criar-se as condições para a criação de um sistema convencionado. Honro-me de ter ajudado a criar condições para que tal fosse possível. A Ordem dos Médicos tinha sobrevivido ao PREC e ao grupo de colegas que quis transformá-la num Sindicato Revolucionário (alguns já estão a fazer a revolução na eternidade e outros, feitos guardiães perpétuos do SNS, assinam abaixo-assinados de protesto ou escrevem longos artigos que ninguém lê, sempre que algo mexe na imutabilidade do SNS). Em julho de 1977, à publicação do novo estatuto da Ordem dos Médicos, seguiu-se a eleição do Dr. António Gentil Martins como bastonário, sendo eu nomeado então para o conselho diretivo do Colégio de Especialistas em Patologia Clínica da Ordem. Esse cargo permitiu que facilmente convencesse o bastonário, que era defensor de solução semelhante para todo o SNS, da importância de a Ordem ser o interlocutor entre as instituições e médicos privados. Assim, depois de várias démarches e reuniões entre um grupo que representava, constituído por mim e pelos Drs. Forte Vaz e Carlos Torres, assinávamos em junho de 1980 o primeiro acordo de convenções entre a Ordem e Ministério dos Assuntos Sociais, representado pelo secretário de Estado da Saúde, Fernando Costa e Sousa. Estabelecia o acordo que todos os médicos especialistas, de todas as especialidades, exercendo no privado, que quisessem aderir àquela convenção, aceitavam os preços socialmente justos que constavam das tabelas então publicadas, e comprometiam-se a receber e tratar por esse preço qualquer doente que se apresentasse com uma credencial requerendo os seus serviços clínicos. Assim foi e assim se pode dar corpo ao prometido no Despacho Arnaut, na lei de 1979 que instituiu o SNS e cumpriu-se o previsto no artigo 64.º da Constituição de 1976. De então até hoje continuaram os convencionados firmes no seu papel de apoio ao SNS, a preços que se tornaram quase insustentáveis quando baixaram perigosa e indiscriminadamente por despacho do ministro da Saúde Dr. Paulo Macedo. Com dificuldade aguentámo-nos. Resta-nos o consolo de saber que o custo médio dos exames laboratoriais feitos nos laboratórios do Estado é cerca de 20% mais caro do que o preço médio que pagam aos convencionados. Resta-nos ainda outra alegria: sem a nossa ação o SNS nunca teria passado do papel.  

RECENTEMENTE FEZ PARTE DO GRUPO DOS 44 QUE APRESENTOU AO ANTERIOR MINISTRO DA SAÚDE UM NOVO PROJETO DE LEI DE BASES DA SAÚDE, QUE ACABOU POR NÃO SER ACEITE. CONSIDERA A ATUAL LEI DE BASES DA SAÚDE CASTRADORA DE UM SISTEMA NACIONAL DE SAÚDE QUE PRESTE CUIDADOS DE SAÚDE AOS UTENTES, INDEPENDENTEMENTE DE UM SERVIÇO PÚBLICO OU PRIVADO? 

Eu assinei um documento denominado “Princípios Orientadores para a Lei de Bases da Saúde”. Representava o sentir e parecer de 44 personalidades da área da Saúde. Documento esse que foi conhecido e que apoiava a Comissão presidida pela Dr.ª Maria de Belém, que elaborava a revisão da Lei de Bases da Saúde a pedido do ministro da Saúde de então, o Prof. Adalberto Campos Fernandes. Nos Princípios” afirmávamos claramente que, embora respeitando e reconhecendo o papel do Serviço Nacional de Saúde, entendíamos que eram necessárias reformas que o conduzissem à modernidade. Mais entendíamos que a complementaridade inteligente do privado, do social e do público seria extremamente virtuosa. As soluções, as ideias, a lógica, o conhecimento profundo da sociedade portuguesa, bem como o saber de experiência feito dos meandros da saúde em todos os seus aspetos, estavam efetivamente refletidos na proposta da Comissão e apontavam um caminho para o futuro. Daí todo o apoio que foi dado pelo Grupo dos 44, grupo esse constituído por personalidades que conheciam profundamente todos os reais problemas da Saúde em Portugal. Infelizmente, por razões exclusivamente políticas, foi aprovada uma Lei de Bases da Saúde que encerra em si a ideia redutora que determinadas forças políticas têm do Serviço Nacional de Saúde.  

CONSIDERA, PELO SEU CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIA, QUE APÓS ESTA PANDEMIA FICOU CLARO A NECESSIDADE DE PERSPETIVAR UMA MELHOR RELAÇÃO ENTRE SETOR PÚBLICO E PRIVADO COMO A MELHOR A SOLUÇÃO DE MELHOR APROVEITAMENTO DOS RECURSOS NACIONAIS? 

Infelizmente e apesar de ser evidente que sem o trabalho denodado dos laboratórios privados, que garantiram até agora quase 50% dos testes feitos, e sem a colaboração dos hospitais privados e Misericórdias, colaboração essa de início recusada, a luta contra a pandemia teria sido bem mais difícil se não impossível. Porém não creio que tal realidade perspetive uma melhor integração do setor público com o setor privado. Direi que as razões ideológicas que levaram à aprovação da atual Lei de Bases são as mesmas que o impedem (e que um dia levarão à sua destruição). Aliás, só por cegueira ideológica não se quer ver a realidade de um país em que o SNS é dos mais iníquos da OCDE (5.º lugar). Vejam-se os números de 2018 (não tenho os de 2019 e, como é óbvio, os de 2020, devido à Covid-19, não podem ser considerados): nesse ano gastou-se, grosso modo, em Saúde neste país qualquer coisa como 17.300 milhões de euros. O Orçamento do Estado apenas consignou para o SNS e Ministério da Saúde cerca de 10.800 milhões. A diferença (cerca de 6500 milhões) saiu do bolso dos portugueses que indiretamente já tinham pago, através dos impostos, o consignado para o SNS. Ou seja, 100% do financiamento global da Saúde foi pago pelos cidadãos, dos quais 62,5% sob a forma de impostos e 37,5% diretamente do bolso dos cidadãos. Estes números exprimem claramente a iniquidade do SNS. 

Porque alguma coisa vai mal no SNS é que se compreende que os funcionários públicos prefiram descontar 3,5% do seu salário para terem acesso a médicos privados ou instituições de saúde privadas. São, entre funcionários e famílias, cerca de um milhão e trezentas mil pessoas. Às vezes interrogo-me sobre o que aconteceria se, como alguns ideólogos mais inflamados queriam, de um momento para o outro se acabasse com a ADSE e os seus beneficiários passassem a recorrer exclusivamente ao SNS? No total, com seguros e outros subsistemas privados, 42% da população tem uma segunda cobertura de saúde para além do SNS. Dá que pensar, não dá? Isto para não falar nos serviços que as Misericórdias prestam aos mais desfavorecidos. Porque continua o SNS a ter defeitos enormes? Por que razões ideológicas não deixam que o reformem e muito menos deixam que se estabeleça uma possível complementaridade virtuosa com os privados e com as estruturas sociais, de forma a servir melhor os portugueses! A continuar assim, creio que chegou a altura de promover a criação de uma mútua semelhante à ADSE, cuja contribuição para o seu funcionamento (cerca de 3% do salário de cada beneficiário) será dividida entre empregadores e empregados, de forma a dar aos portugueses que trabalham no privado a mesma proteção na saúde que têm os funcionários públicos. 

 

PELA AVALIAÇÃO QUE HOJE FAZEMOS DA SUA CAPACIDADE LABORATORIAL, PODEMOS GARANTIR QUE ESTAREMOS SEMPRE, COM A SUA PARTICIPAÇÃO NO SISTEMA NACIONAL DE SAÚDE, NA LINHA DA FRENTE PARA RESPONDER AOS NOVOS DESAFIOS DAS DOENÇAS DA HUMANIDADE ? 

Obviamente. Essa foi sempre a minha postura e a postura do meu grupo laboratorial. Assim avançamos decididamente para a área da Medicina Molecular, o novo paradigma da Medicina que foi crismado por Obama como Medicina de Precisão, também conhecida como Medicina Personalizada, que tem tido uma evolução notável, com o aparecimento de novos marcadores na área da oncologia que permitem o diagnóstico preciso e a terapêutica precisa da situação oncológica. No caso das situações oncológicas, tal é feito mediante a sequenciação do genoma do tecido tumoral de forma a encontrar determinadas alterações moleculares que nos indicam o melhor caminho a seguir. A juntar a este meio de diagnóstico, fomos pioneiros em Portugal da Biópsia Líquida, mediante a qual, numa amostra de sangue periférico, separamos e identificamos o DNA tumoral que circula livremente no sangue, sequenciando esse DNA de modo a diagnosticar a existência de metástases ou mesmo neoplasias ainda não diagnosticada pelos meios habituais. Nesta área da Oncogenómica está o grande futuro da Patologia Clínica através da Patologia Molecular e da Genética Laboratorial, que abre cada vez mais o leque às capacidades de diagnóstico. Outras das evoluções em que trabalhamos passa-se no campo da Imunopatologia, onde começamos a descobrir que cada vez mais inúmeras doenças têm uma etiologia de autoagressão, como é, por exemplo, o caso das doenças neurológicas, que se verifica serem em grande parte de origem imunológica. Obviamente também nos debruçamos sobre o risco das doenças hereditárias. Desde o cancro a outras doenças não oncológicas. Para isso contamos não apenas com os painéis genéticos adequados, mas contamos também com três médicos especialistas em genética clínica que previamente a qualquer pesquisa deste tipo fazem a história do doente de modo a ver se se justifica ou não fazer esse estudo. Avançamos também na Farmacogenómica, pondo à disposição dos interessados um teste que permite saber como irão reagir frente a uma série extensa de medicamentos. Este teste significa um grande passo em relação à saúde do próprio, e se adotado pelo SNS representaria um grande passo porque iria permitir fazer uma pequena ficha em que pelo estudo do perfil genómico do doente se evitasse dar medicamentos que não vão fazer efeito nenhum. Também desenvolvemos o estudo do microbioma, um teste que por sequenciação do genoma das bactérias fecais nos permite identificar e quantificar as mesmas. A inovação nesta área tem a particularidade de colocarmos ao serviço do doente e dos seus médicos assistentes toda uma série de testes que em termos económicos são cerca de um terço mais baratos do que se está a praticar normalmente noutros países, porque entendemos que os doentes têm de ter acesso a eles, já que ninguém (SNS ou seguros) comparticipa ainda este tipo de testes. 

Há um aspeto aqui que eu gostava de deixar muito claro: temos imensos colegas, cada um especialista, de medicina especializada em todas as áreas, e somos consultores constantes dos nossos colegas clínicos sobre qualquer dúvida, qualquer problema, com os quais discutimos todo o tipo de medicina laboratorial. A partir dos nossos conhecimentos, ajudamos os nossos colegas, é uma interajuda constante, como é evidente, e isso é muito importante. Mas, ao contrário do que a cartilha e os próceres do radicalismo pequeno burguês de fachada socialista pretendem, não somos parasitas de ninguém, nem mesmo do Estado. Hoje a nossa atividade e as nossas receitas apenas dependem em 30% das comparticipações resultantes da procura de doentes vindos dos Centros de Saúde. O restante vem de particulares, ADSE, outros subsistemas, seguros, etc. Podemos, se for caso disso, isto é, se esta gente algum dia estiver no poder, deixar de trabalhar para o SNS se for essa a vontade deles, sem que nada se altere na nossa postura e futuro.  

O PROF. GERMANO DE SOUSA É, POR CERTO, UM HOMEM REALIZADO PELA OBRA FEITA EM PROL DA SAÚDE NACIONAL. CONSIDERA, PELA SUA VOCAÇÃO MÉDICA E CONHECIMENTO, QUE A NOSSA POLÍTICA DE SAÚDE ESTÁ NO BOM CAMINHO, PARTICULARMENTE QUANDO OUVIMOS SOLUÇÕES APONTADAS PARA O SETOR COM OS INVESTIMENTOS QUE SÃO ANUNCIADOS NO PRR? 

Os tempos que atravessamos são e vão ser difíceis para grande parte do povo português. Recessão, maior desemprego e baixa de salários e pensões serão realidades a esperar das consequências trazidas à economia pela pandemia e o futuro próximo não é de modo algum sorridente. Resta-nos a certeza de que melhores dias virão, pois os portugueses, tal como já aconteceu na nossa história e mesmo num passado mais recente, com a sua reconhecida capacidade de resistência saberão conjugar esforços e ultrapassarão estas dificuldades mais uma vez e com real sucesso. Foram sempre a solidariedade e a coesão social, características tão próprias do nosso povo, que nos deram a força e a resistência para vencer. No entanto para que a solidariedade e coesão nacionais sejam mantidas e se evite um maior mal-estar social, é necessário que pelo menos um dos seus atuais pilares e símbolos seja acarinhado e preservado frente aos ventos frios da recessão. Falo como é evidente do direito de todos ao acesso a cuidados de saúde de forma predominantemente gratuita. Sem a manutenção de um Sistema Nacional de Saúde com essa característica tudo será mais difícil e socialmente mais injusto. Porém, preocupa-me grandemente a sua sustentabilidade, tal como me preocupa o modo como vai ser gasto o dinheiro dos contribuintes europeus na área da saúde. Excetuando algumas propostas com interesse vindas dos serviços partilhados do Ministério da Saúde, não me pareceu que houvesse propostas realmente inovadoras. Fiquei aliás preocupado com a proposta de porem minilaboratórios e, pasme-se, ecógrafos nos Centros de Saúde. Terá, quem o propôs, uma mínima ideia de quanto irá custar manter isso funcional e com qualidade? Se os preços convencionados já são em média 20% mais baratos, quanto custarão os testes feitos nestes arremedos de laboratórios? Quando acabar a bazuka, quem sustenta isso? Vi ao longo da vida tentativas para fazerem coisas semelhantes que terminaram em sucata! Estou com muita curiosidade relativamente ao que se vai passar! Se precisam realmente de meios complementares de diagnóstico nos Centros de Saúde, porque não acertaram com as associações do setor a obrigatoriedade desse apoio? É que talvez quem teve essa ideia provavelmente nunca se apercebeu que a rede de meios complementares cobre praticamente 100% do país. 

COMO VAI SER ENTÃO O NOSSO FUTURO? COM A CHEGADA DA TECNOLOGIA 5G, QUE CONDUZIRÁ, ENTRE OUTRAS APLICAÇÕES, À INTRODUÇÃO DA TELEMONITORIZAÇÃO QUE LEVARÁ AO MELHOR ACOMPANHAMENTO DE DOENTES, PARTICULARMENTE OS MAIS IDOSOS, MAS CONDUZIRÁ A UMA TRANSFORMAÇÃO DO ATENDIMENTO DOS CUIDADOS PRIMÁRIOS. O QUE ESTÁ PREVISTO INVESTIR NO SNS ESTÁ ENQUADRADO COM ESTA REALIDADE? 

Posso estar a ser injusto, mas para além da telemedicina, isto é, das consultas médicas feitas através de um computador, não me foi claro que houvesse no PRR nada que cheirasse a monitorização da população envelhecida portuguesa. E bem preciso era. Com a 5G e a Internet of Medical Things (IoMT) é possível criar uma infraestrutura conectada de dispositivos médicos, aplicativos de software e sistemas e serviços de saúde. Lembro que atualmente mais de 500 mil tecnologias médicas estão já disponíveis.  As ferramentas IoMT mudarão rapidamente o modo de prestação de cuidados de saúde. Por sua vez a 5G transformará a prestação de cuidados de saúde: aumenta a velocidade e a capacidade, reduz a latência e permitirá usos complexos de Inteligência Artificial e realidade aumentada e virtual. Aliás a Inteligência Artificial desempenhará um importante e fundamental papel na monitorização da saúde individual e na medicina baseada em dados de saúde que serão transformados em informação e em conhecimento por processos analíticos e cognitivos tornando possível: melhorar a velocidade e a precisão do diagnóstico, uma gestão proativa e preditiva dos cuidados de saúde e risco de doença de cada um, bem como terapêuticas precisas e personalizadas.  

Assim, num sistema de saúde digital centrado no doente e a ele ligado, os prestadores de saúde fornecerão o suporte e as ferramentas eletrónicas (apps, sensores, etc.) necessárias para gerir digitalmente a sua saúde e a doença, mediante Medicina Baseada em Dados. A vigilância do sistema seria entregue aos médicos de família, que, para além de terem um controlo total sobre a saúde dos seus doentes, só atuarão quando realmente necessário mediante consultas virtuais e intervenções pessoais. A telemonitorização permitirá que todos os idosos sejam adequadamente seguidos com muitíssimo menos esforço dos médicos de família.  

 

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