“HÁ NECESSIDADE DE CANALIZAR PARA O SNS MONTANTES MAIORES DO QUE AQUELES QUE ATUALMENTE SE VERIFICAM”
Francisco George, o atual diretor-geral da Saúde, é licenciado em Medicina, pela Faculdade de Medicina de Lisboa. Quase a completar 70 anos, o médico abandonará o seu cargo ainda este ano, mas revela um sentimento de dever cumprido: “todos na Direção-Geral da Saúde temos a consciência de que o desempenho coletivo tem tido bons resultados”. Imune às mudanças de governos, Francisco George prefere não comentar o desempenho nem do ministro da Saúde, nem dos seus antecessores, contudo refere que Adalberto Campos Fernandes, o atual detentor da pasta da Saúde, é um “companheiro e um estudioso na área da administração dos sistemas de saúde”, com quem nunca teve “qualquer dificuldade de diálogo nem qualquer divergência”. Médico há mais de 40 anos, Francisco George afirma que temos, atualmente, um Serviço Nacional de Saúde “excelente” e que é “património dos portugueses.” Em termos de problemas, o diretor-geral da Saúde destaca a incidência das doenças crónicas, que, para além de serem um “peso” para o SNS, são também a principal causa da “mortalidade prematura” no nosso país. Para fazer face a este cenário há que, tal como indica Francisco George, apostar cada vez mais na “prevenção”, em especial contra o tabagismo, que, em conjunto com a alimentação, pode “poupar”, imediatamente, a morte antes dos 70 anos a “5 mil portugueses”, conclui o médico.
Optou por seguir medicina. Porquê? Foi uma imposição do seu pai, que também era médico e diretor dos Hospitais Civis de Lisboa?
Não, não foi uma imposição, foi o exemplo do meu pai. Desde muito pequeno eu frequentava o Hospital de Santa Marta, porque como éramos dois irmãos gémeos, a minha mãe ficava com um, o meu pai ia com o outro, e aos fins de semana, ele, invariavelmente, ia ao hospital ver os seus doentes, aqueles que mais o preocupavam, e alternadamente, ou eu ou o meu irmão, íamos pela mão dele. Ficou sempre para mim essa marca do cuidado para com os doentes, de não fazer fins de semana, de pôr o interesse primeiro na resolução das preocupações. Foi esse exemplo – que todos os médicos da minha geração reconheciam – que, provavelmente, me levou mais tarde a optar pela Medicina. Nós tínhamos de escolher muito cedo, aos 15 anos, a carreira, a universidade, e a entrada na faculdade era antecedida por uma prova de admissão, que ia de acordo com o que tínhamos escolhido. Para mim, Medicina ou Farmácia eram hipóteses. O curso de Medicina era muito longo: seis anos seguidos, mais um de estágio obrigatório, e só depois é que tínhamos o caminho aberto para a inscrição na Ordem dos Médicos, mas depois, começavam os internatos, que também eram longos.
Qual é o estado da Saúde em Portugal?
Em termos de indicadores objetivos, é bom, é um dos melhores do mundo, mas é verdade que há aspetos que são muitas vezes publicitados, aspetos negativos, que são raros, mas que são muito divulgados e comentados. Há aqui uma dualidade. O Portugal democrático ascendeu aos primeiros patamares de qualidade em termos de medicina, nós ocupamos os cinco primeiros lugares do top mundial, medido em diversos indicadores, nomeadamente a mortalidade infantil, que é muito baixa, mas também a mortalidade materna, entre outros aspetos. De destacar ainda a esperança média de vida. Hoje, quando nascemos, em Lisboa, temos uma grande probabilidade de ultrapassar os 80 anos, a caminho dos 85, e teremos, cada vez mais, uma vida mais prolongada e com mais qualidade. Isto gera outros problemas que têm que ver com a maior incidência de doenças crónicas – doenças que não se curam, mas que têm tratamento, por exemplo a diabetes. Quanto maior é a probabilidade de se viver, mais probabilidade temos de contrair doenças crónicas. Temos aqui um grande peso para o SNS.
Face ao cenário que descreveu, considera que é necessário injetar mais dinheiro no Sistema Nacional de Saúde?
Não é uma questão de ser necessário mais dinheiro, é uma questão de eficiência: produzir mais com o mesmo. E é nesse contexto que nós estamos a trabalhar nas normas de orientação clínica, que visam dar indicações sobre boas práticas para as diferentes condições que mais nos preocupam, nomeadamente as doenças crónicas. Neste sentido é possível reduzir custos. Não posso deixar de referir que seria bom que o Ministério das Finanças reconhecesse que há – apesar do ambiente orçamental que hoje é vivido – necessidade de canalizar para o Serviço Nacional de Saúde montantes maiores do que aqueles que atualmente se verificam.
Quais são, na sua opinião, os principais problemas ou dificuldades com que o Governo se depara, atualmente, na área da Saúde?
As doenças crónicas, pois constituem um grande problema, não só em Portugal mas também na Europa. São as doenças crónicas que antecipam o final da vida, ainda há muitos portugueses que não festejam os 70 anos de idade – é a isto que chamamos a mortalidade prematura. As principais causas de morte são as doenças oncológicas, as doenças coronárias e as doenças respiratórias, além da diabetes. O nosso trabalho é criar condições de prevenção para essas doenças, de forma a diferir o final da vida, para além dos 70 anos. Um em cada cinco portugueses não atinge os 70 anos. Esta é uma preocupação que todos temos na Europa. Aqui podemos apostar em prevenção, por exemplo, ao nível do tabagismo, pois a luta contra este problema é, absolutamente, fundamental. Temos de ser mais exigentes nesta luta, pois este fator, em conjunto com a alimentação, pode, imediatamente, poupar a morte antes dos 70 anos a 5 mil portugueses.
Como comenta o desempenho do ministro da Saúde?
Eu não comento, nunca, o desempenho do ministro da Saúde atual, nem dos anteriores. O que posso dizer é que sou amigo pessoal de quase todos os ministros da Saúde, e dos que não era, fiquei a ser. Em relação a Adalberto Campos Fernandes, posso dizer que é um colega meu, da minha especialidade, é um companheiro, um estudioso na área da administração dos sistemas de saúde. Partilhei lições na Escola de Saúde com ele, ensinámos juntos as mesmas disciplinas e nunca entre nós houve qualquer dificuldade de diálogo nem qualquer divergência.
Em 2005 assumiu as funções de diretor-geral da Direção-Geral da Saúde. Em outubro deste ano, passados 12 anos, abandonará o lugar por força da lei, pois completará 70 anos.
É verdade irei completar em outubro 70 anos de idade.
Se não fosse por isso, continuaria como diretor-geral?
Isso é algo que não depende só de mim, a lei portuguesa é clara e diz que aos 70 anos de idade todos os funcionários públicos devem sair. E devo dizer que quando entrei para a Administração Pública, há 44 anos atrás, já sabia que tinha de sair. É do interesse público mudar e renovar os cargos. Não concordo com cargos vitalícios.
Que balanço faz do seu mandato?
Considero o meu mandato positivo por diversas razões. Antes de mais nada, a nível pessoal, posso afirmar que, apesar da complexidade dos desafios constantes, dos numerosos embaraços e desafios que por vezes surgem, todos na Direção-Geral da Saúde temos a consciência de que o desempenho coletivo tem tido bons resultados, em diversos domínios, nomeadamente no que respeita à qualidade do exercício da própria medicina, através de normas que têm sido muito bem aceites pela comunidade médica, pelas ligações que temos ao estrangeiro – que nunca tivemos. Posso referir, por exemplo, que ainda há poucos dias assinámos um acordo com Espanha para que os dois países se unissem e potenciassem as capacidades instaladas no que diz respeito às doenças epidémicas. Por outro lado, vai passar a existir também partilha entre profissionais dos dois países.
Quais foram as principais medidas que implementou durante o seu mandato? Que outras medidas lhe faltam implementar?
Fizemos desde o início um percurso que tem ligação ao chamado mundo digital, a Direção-Geral da Saúde digital. O nosso site é muito frequentado por médicos, enfermeiros e especialistas na área da Saúde. A DGS está na linha da frente do movimento eHealth (Saúde Eletrónica) e Portugal é, reconhecidamente, o país do mundo em que os avanços concretos nesta área são mais visíveis. Desde 2014 que não há Certificados de Óbito em papel, tudo é desmaterializado.
Os hospitais partilham online os dados dos seus doentes? Concorda com este método?
Reconheço que existe um movimento conservador contra estes sistemas, mas não tem fundamento, pois estes sistemas são, incomparavelmente, mais seguros do que o papel. A história clínica ou os dados laboratoriais, em papel, estão acessíveis a todos aqueles que entram num hospital e, como sabe, isso é tarefa fácil. Em papel todos têm acesso a tudo. Isto não se compara aos métodos eletrónicos, pois eles só são observados por quem está autorizado a entrar na plataforma.
A Saúde está hoje mais politizada?
A Saúde é sempre política porque, se fizermos uma sondagem aos cidadãos, sobre as suas preocupações, a saúde surge em primeiro lugar. Os cidadãos precisam de saber que têm acesso à prevenção das doenças, bem como às informações que visam dar mais conhecimentos, nomeadamente sobre a importância da alimentação – com menos sal, menos açúcar, menos gorduras. Contudo, é também importante sensibilizar para a importância do exercício físico, é preciso voltar aos parques, andar de bicicleta, de trotinete, de triciclo, é preciso saltar, correr e criar este prazer do exercício físico. No que aos cuidados hospitalares diz respeito, a grande luta é reduzir desigualdades, pois não faz sentido que uns cidadãos tenham o acesso mais facilitado do que outros. Temos que dar acesso a todos, em função das suas necessidades.
Sente que alguma vez falhou no desempenho das suas funções?
Obviamente que todos erramos, mas quando se reconhece que houve um erro de interpretação ou de decisão, volta-se atrás. As normas de orientação clínica, por exemplo, são muitas vezes emendadas uma, duas, três, quatro vezes, quando é necessário. No início do processo de epidemia da Hepatite A, por exemplo, houve medidas que foram tomadas e que agora já não são necessárias. Não é que tenha havido um erro, há momentos em que há determinadas exigências que depois já não se verificam, mas mesmo assim, nas decisões iniciais, podem acontecer falhas.
A política está nos seus horizontes?
Nunca saiu. Interesso-me pela política desde que percebi que existem desigualdades na população. Portanto, é um assunto que está sempre presente.
O que leva um médico a querer ser político? Considera que há políticas de saúde que só um médico consegue conceber e desenvolver?
Sim, há certas políticas que só os médicos podem perceber. Os médicos são indispensáveis neste processo.
Que SNS temos hoje? O que é necessário fazer para termos um SNS mais eficiente?
Temos, hoje, um Serviço Nacional de Saúde excelente. Temos problemas, um dos quais é a não perceção dos portugueses de que o SNS é deles, são eles que o pagam com os impostos. Os impostos são pagos por todos, mesmo por aqueles que não têm IRS, existem impostos diretos. O Serviço Nacional de Saúde é património dos portugueses, mas muitos deles não conhecem a própria sigla [SNS].
Afirmou que há cada vez mais portugueses que optam por fazer seguros de saúde. O que justifica esta escolha?
É uma realidade que não podemos ignorar. Caminhamos para um futuro, a médio prazo, onde essas prestações de seguro podem representar metade da população. O que temos de fazer é contrapor um SNS robusto, para todos – não para pobres, para todos –, com grande qualidade e com a prestação de serviço muito idêntica. Temos de caminhar no sentido da qualidade e da humanização e aprender com aquilo que fazem os privados.
Na sua opinião o setor privado retirou médicos ao SNS?
Isso é da opinião de todos. Houve um processo de “desnatação”, os privados procuram os melhores e isso traduziu-se na “desnatação” de alguns serviços.
Quanto ao tema da vacinação, o que há a fazer para mudar as mentalidades dos que não acreditam nos benefícios das vacinas?
Quem não acredita não tem formação e não tem acesso a toda a informação.
Na sua opinião a comunicação social dá muita importância às doenças e à saúde?
Sim, dá, mas eu dou-me bem com os jornalistas. Eu tenho como norma recebê-los sempre pessoalmente e, todos reconhecem isso, tenho uma relação próxima, diria até amigável, com todos os jornalistas que fazem saúde, e isso é bom, porque naturalmente nós não fazemos saúde pública, nem prevenção, nem comunicamos com megafones. A única forma de fazer saúde, de estar em saúde e de transmitir a informação aos cidadãos é através dos meios de comunicação social e há aqui um interesse recíproco, que é informar.
Foi colega de escola de Marcelo Rebelo de Sousa, que leitura faz do seu desempenho enquanto Presidente da República?
Excelente! Sobretudo em contraste com o anterior. Muitas vezes penso no que pensarão os anteriores presidentes da República sobre o desempenho de Marcelo Rebelo de Sousa.
O Presidente Marcelo é o Marcelo Rebelo de Sousa que conhecia?
Sempre foi igual.