“O QUE EU GOSTAVA QUE ACONTECESSE ERA A CONCRETIZAÇÃO DO PROJETO DE MODERNIZAÇÃO QUE TRAGO PARA A JUSTIÇA”
Nome de topo entre os magistrados portugueses, Francisca Van Dunem é, atualmente, a ministra da Justiça do Governo de António Costa. A antiga procuradora-geral-distrital de Lisboa é conhecida pelo seu espírito reservado, sendo a primeira magistrada a assumir funções ministeriais depois de Laborinho Lúcio, nos anos 1980. Francisca Van Dunem nasceu em Luanda, pertencendo às famílias mais conceituadas de Angola, mas veio para Lisboa para tirar o curso de Direito. Logo depois, em 1979, entra na carreira da magistratura, onde foi progredindo, tendo sido nomeada procuradora-geral distrital de Lisboa em 2007. Estaria prestes a ser nomeada conselheira, quando iniciou funções no Governo. Quanto ao desafio que atualmente enfrenta, o de estar à frente da pasta da Justiça, a ministra afirma que o mesmo tem sido “muito intenso” e de “muita aprendizagem”, mas Francisca Van Dunem está convicta de que todo o esforço está a ser “amplamente recompensado”. Para a ministra da Justiça existe um desafio fundamental que é o de “promover a mudança” num ambiente que é, por um lado, de recursos escassos e, por outro, de alguma desconfiança e de uma grande insatisfação. Na opinião de Francisca Van Dunem, existe uma grande desconfiança em relação à Justiça e isso deve constituir “um problema e uma grande preocupação”, assegura, sendo imperativo que, no futuro, os cidadãos “voltem a acreditar” no seu sistema de Justiça.
Como encara este desafio como ministra da Justiça?
Este desafio tem sido muito intenso, de muita aprendizagem, e tem exigido de mim muito esforço, em termos físicos e intelectuais. De qualquer modo, diria que neste momento, ao fim de um ano, estou convencida de que todo o esforço que foi feito está a ser amplamente compensado, pela perspetiva de resultados que já temos e por aqueles que pensamos que ainda poderemos vir a ter.
Fazem falta mais mulheres na política?
Eu não sou, propriamente, uma mulher na política. Sou uma magistrada emprestada a uma função política por um período de tempo muito delimitado. Diria que a política deverá espelhar o retrato da sociedade na perspetiva do género e, nessa dimensão, provavelmente faria sentido que houvesse um maior número de mulheres a exercer a atividade política.
Na sua opinião, os magistrados não devem ter qualquer constrangimento em entrar na vida política e serem ministros?
Não se trata apenas da minha opinião, existe uma previsão expressa de que os magistrados judiciais e do Ministério Público podem exercer funções como Presidente da República, ministro e conselheiro de Estado e também como deputados. Penso que isto enriquece a governação, pois a Justiça tem uma forte componente técnica e tem, de facto, uma dimensão institucional cuja compreensão os magistrados têm de uma maneira mais abrangente.
Que balanço faz do seu mandato? Quais são os principais desafios da pasta que tutela?
Acho que existe um desafio fundamental, que é o de promover a mudança num ambiente que é, por um lado, um ambiente de recursos escassos e, por outro, claramente, um ambiente de alguma desconfiança e de uma grande insatisfação. Esta é uma área, como outras, que foi atingida, nos últimos anos, por todas as dificuldades por que o país passou. Quer os oficiais de justiça, quer as outras classes de profissionais da área da Justiça, sentiram-se muito atingidos por essas dificuldades. Eu própria, quando entrei neste ministério, vinha de uma magistratura conhecendo o ambiente de desânimo que lá se vivia, portanto, para além da vantagem óbvia de se conhecer a matéria e o ambiente em que se vai trabalhar, é indiscutível que a circunstância de se perceber que esse ambiente está contaminado pelo desânimo – se assim se pode dizer – e que se tem poucos meios para, no imediato, se conseguir alterar radicalmente o panorama que suporta esse desânimo, não é fácil. Mas estou convencida de que neste momento há a compreensão das reformas que estão a ser feitas no Ministério da Justiça e que, ao nível das várias classes profissionais, tem havido a maior colaboração, a maior abertura e um diálogo muito produtivo na construção dos equilíbrios, que farão o futuro da Justiça. De referir que para este ano o orçamento para este ministério foi aumentado.
O que é o plano Justiça + Próxima? Que benefícios trará?
Justiça + Próxima é um plano, uma marca e uma ambição. Quando vim para a Justiça vinha com uma ideia que ainda mantenho e que se prende com o facto de os últimos anos terem sido essencialmente marcados por reformas legislativas. Houve uma grande dificuldade em assimilar as mesmas, dado o ritmo a que se processaram. Foram reformas de natureza processual. A Justiça conheceu nos últimos 40 anos, seguramente, muitos progressos do ponto de vista das suas infraestruturas, mas também conheceu sucessivas alterações processuais – que nos últimos 20 anos visam a demanda do nosso Santo Graal, a celeridade. Em termos de perceção pública não há ideia – muito pelo contrário – de que os nossos magistrados respondem mal do ponto de vista qualitativo. Aquilo que se vem questionando, de há uns anos para cá, é a celeridade. As medidas de política legislativa foram passando muito por intervenções processuais que visaram tornar mais célere a marcha dos processos. Acontece que, para além do processo, há uma questão que para mim é fundamental, que é a questão da organização. Em Portugal temos palácios da Justiça de uma enorme modernidade, espaços monumentais, uma sucessão brutal de códigos novos, mas falta-nos organização. Significa isto que, do meu ponto de vista, aquilo que estava a faltar, aquilo que era necessário introduzir neste circuito e neste universo, para que seja possível efetivar uma mudança, era a organização. Por tudo isto, achámos necessário pensar no programa Justiça + Próxima, que tem a ver com a necessidade de modernizar, mas também com a proximidade. Queremos encontrar uma linguagem menos críptica, uma linguagem que faça com que as pessoas sejam capazes de descodificar aquilo que os tribunais dizem, aquilo que uma decisão diz quando é enviada a determinado cidadão. Depois, por outro lado, queremos que seja fácil, para a generalidade das pessoas, ter informação sobre a Justiça. Atualmente existe uma grande desconfiança em relação à Justiça e isso deve constituir um problema e uma grande preocupação para quem tem as responsabilidades que o ministro da Justiça tem, daí a Justiça + Próxima. Aproximar em todas as componentes: na compreensão, na informação, na acessibilidade. Este programa integra também, para além de medidas, projetos que visam fazer esse processo de aproximação e reconciliação da Justiça com os cidadãos.
Que projetos estão pensados no âmbito do programa Justiça + Próxima?
Um dos projetos que está em curso tem a ver com a reorganização das secretarias dos tribunais. É um projeto-piloto que lida com dois segmentos: por um lado, o trabalho das secretarias – os procedimentos, os circuitos; a outra dimensão é a relação com os cidadãos – criámos, no Tribunal de Sintra, um balcão de atendimento dos cidadãos, onde um conjunto de funcionários pode dar informação sobre os diferentes processos.
O que vai ser o Portal da Justiça?
Neste portal vai ser possível encontrar dados sobre tudo, quer sobre o desempenho global do sistema judicial, quer sobre os magistrados e oficiais de justiça existentes nas várias unidades. Teremos também informação sobre a componente dos registos – os do notariado também são uma área da Justiça. Tudo o que seja acedível de forma remota, o Portal da Justiça terá.
Considera que existem tribunais à beira da rutura em termos operacionais? O que há a fazer para alterar esta situação?
Nós temos dois segmentos que têm sido, nos últimos anos, as áreas críticas do sistema judicial, que são as execuções e as insolvências, e aí tem havido um debate intenso entre as magistraturas e o mundo exterior, nomeadamente as instituições da área económica – que consideram que a evolução e o tempo de vida desses processos condicionam a atividade económica. As magistraturas vêm dizendo que não são elas que causam as dificuldades económicas que esses processos geram e levam para os tribunais. O que temos é uma realidade em que cerca de 70% dos processos cíveis são processos executivos, de cobranças de dívidas. Os tribunais foram transformados, substancialmente, a partir de 2011, em grandes espaços de cobranças de dívidas, em resultado da crise económica que o país atravessou e, obviamente, as estruturas do judiciário não estavam calibradas para responder a esse caudal de solicitações que lhes surgiu e tiveram dificuldade em fazê-lo. Neste momento, diria que, com o conjunto de intervenções que houve relativamente ao processo executivo, temos a expetativa de que rapidamente conseguiremos inverter esta situação, que libertaremos uma grande parte daquilo que é o espaço de congestionamento atual e poderemos alocar os recursos que temos a outras áreas.
Temos carência de magistrados e de oficiais de justiça em Portugal?
Neste momento temos, mas será uma carência temporária pela simples razão de que desde novembro de 2015, data de início de funções deste Governo, foram abertos dois cursos de formação para magistrados no Centro de Estudos Judiciários, com 126 vagas em cada um dos cursos. Foi também lançado um concurso para o ingresso de 400 oficiais de justiça nas secretarias dos tribunais e nos serviços do Ministério Público.
É possível, na sua opinião, encurtar a formação de magistrados no nosso país e continuar a formar bons profissionais?
Não tenho a menor dúvida de que é possível. No que diz respeito à formação de magistrados, o Governo, muito recentemente, publicou um diploma em que, justamente, reduzia o tempo de formação, e esta redução tem a ver com o estágio. A formação de magistrados é, neste momento, de três anos. Existe um período de formação na escola, um período letivo, e a partir daí essas pessoas, que são designadas como auditores de justiça, transitam para os tribunais, onde trabalham num primeiro ano com apoio – existe um magistrado sénior, que é formador e que trabalha com eles, orientando-os para aquilo que é a praxis judiciária. No ano seguinte já são estagiários e já trabalham autonomamente. O que se fez foi reduzir o último período, que é o período de estágio. Se me pergunta se, teoricamente, é possível repensar este modelo, eu penso que sim, admito que não sejam necessários três anos para formar um magistrado.
Existe alguma possibilidade de fazer baixar as custas processuais, uma vez que estas fazem com que a Justiça se torne inacessível para a população portuguesa que enfrenta carências económicas?
Claro que é desejável que as custas processuais se situem em níveis compatíveis com a garantia do acesso à Justiça e aos Tribunais consagrada na Constituição. Depois, obviamente que a questão das custas processuais não é a única que tem que ver com o acesso à Justiça. O acesso à Justiça faz parte de um ambiente mais vasto que envolve uma série de questões como o apoio judiciário, a consulta jurídica, que têm que ser pensadas em conjunto para se conseguirem encontrar respostas que sejam suficientemente hábeis para resolver essa dificuldade.
Portugal tem uma taxa de encarceramento muito elevada para os padrões médios da União Europeia. Concorda com esta afirmação? O que está pensado para alterar esta realidade?
Sim, sobretudo se nós ponderarmos e tivermos presente que a estrutura do crime nacional é essencialmente de pequena e média criminalidade. Nessa perspetiva faz pouco sentido que tenhamos as taxas de encarceramento que temos e, portanto, há aqui um problema que não está devidamente analisado. Precisamos de perceber os fatores que levam a que existam taxas de encarceramento tão elevadas. Criámos um grupo de trabalho que tem como objetivo fazer a análise das penas curtas, no sentido de encontrar respostas alternativas ao encarceramento que conjuguem, por um lado, as necessidades repressivas e, por outro, as condições de ressocialização.
O que é esperado do lançamento da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica – UNC3T?
O que esperamos é que essa unidade esteja na vanguarda do combate ao cibercrime. Do ponto de vista das tendências criminais e da análise prospetiva que é possível fazer neste momento, aquilo que se identifica ao nível das ameaças, do ponto de vista europeu e nacional, são justamente fenómenos de crime organizado, e depois, simultaneamente, uma grande intervenção do crime informático e do crime praticado em ambiente informático. Desde logo, a utilização dos ambientes informáticos para a prática de determinado tipo de crimes – a darknet – funciona para todos os tráficos possíveis. Nesta perspetiva, a ideia que tínhamos era a de que era necessário dotar a Polícia Judiciária de uma unidade que estivesse na vanguarda, do ponto de vista tecnológico, daquilo que hoje se faz a nível europeu e internacional e que pudesse ombrear com os seus pares, ao nível europeu, no combate desse tipo de fenómenos. Embora Portugal não tenha nenhum problema grave a esse nível, existem aqui questões que têm que ver com a cooperação policial e judiciária, que exigem de nós um padrão de resposta equivalente àquele que têm os congéneres da Polícia Judiciária, pelo menos a nível europeu.
Como vê o atraso no desenvolvimento e resolução dos diferentes casos mediáticos que abundam em Portugal?
Nós temos alguma tendência para observar o fenómeno judiciário pela lupa dos casos complexos, mediáticos e longos, por isso é que me parece importante que haja divulgação de informação que permita perceber que no universo de resposta criminal esses casos são totalmente minoritários. Todos os agentes do judiciário têm o máximo interesse de que estes casos se resolvam com a máxima rapidez.
Sente que a sua tutela é avaliada pela resolução ou não desses mesmos casos?
Não pode ser, não deve ser.
Mas sente isso?
Eu sei que às vezes se confunde e eu tenho noção de que o nível de informação que hoje existe sobre o sistema de Justiça, sobre os seus vários órgãos e agentes e sobre a forma como eles se relacionam entre si é bastante ténue. O que significa que é normal atribuir-se, por exemplo, ao ministro da Justiça, responsabilidades por processos. O ministro da Justiça não deve nem pode intervir em matérias processuais.
São cada vez mais os casos, no nosso país, de violência doméstica e na adolescência. O que há a fazer para travar estes crimes?
É um trabalho longo e moroso que, seguramente, só vai produzir resultados a prazo. O que eu digo é que é preciso trabalharmos todos os dias. Ocorre, todos os dias, um número muito expressivo de crimes que são praticados em contexto familiar. Eu diria que fizemos um percurso importante no que diz respeito ao combate a esse crime e à prevenção – porque a prevenção aqui é essencial. Existem, atualmente, as fichas de avaliação de risco, que ajudam na predição. Simultaneamente criou-se, no ano passado, um mecanismo de revisão dos casos de homicídio em contexto de violência doméstica. Temos também um conjunto de respostas institucionais que têm a ver com a possibilidade de intervenção judicial de afastamento dos agressores, existem programas de contenção e tratamento dos agressores no interior das cadeias ou fora do ambiente prisional.
Como comenta o adiamento da sua visita a Angola? O cancelamento da mesma teve que ver com o facto de o vice-presidente angolano ter sido acusado de corrupção ativa pelo Ministério Público português?
Eu fui convidada para ir a Angola a 22 de fevereiro. O que aconteceu nessa altura foi que as autoridades angolanas, o meu homólogo angolano, comunicaram que não haveria condições para eu ir. As coisas são assim, e eu não tenho que fazer leituras nem interpretações a esse respeito. Seguramente, a visita será reagendada.
Que marca quer deixar na Justiça?
O que eu gostava que acontecesse era a concretização do projeto de modernização que trago para a Justiça. Por outro lado, gostava que se mantivesse o ambiente de pacificação que neste momento existe na Justiça e, sobretudo, que os agentes da área da Justiça compreendam a necessidade de se envolverem nestas reformas. Gostava de deixar um espaço aberto que tenha suficiente informação sobre a Justiça. Um espaço de partilha de informação entre a Justiça e os cidadãos que, de alguma forma, reconcilie estes dois polos, que devolva aos cidadãos a ideia de que a Justiça se exerce no seu interesse e que se exerce com equidade e em tempo. É necessário que os cidadãos voltem a acreditar no seu sistema de Justiça.