FERNANDO LEAL DA COSTA

JCF_0112“O SNS continua a desempenhar o seu papel como referencial na prestação de cuidados de saúde em Portugal”

 

Licenciado em Medicina pela Universidade de Lisboa, Fernando Leal da Costa, o atual secretário de Estado Adjunto do ministro da Saúde, conta com um currículo invejável.  De médico a secretário de Estado, passando pela Casa Civil de Cavaco Silva, Leal da Costa entendeu “que tinha o dever de contribuir para que o serviço público de saúde pudesse ganhar com o programa de ajustamento”. Respondendo ao desafio de “desenvolver políticas para garantir melhor saúde” e para que a crise afetasse “na menor dimensão possível os bons indicadores já alcançados”, este governante orgulha-se de poder agora afirmar que atualmente existem “indicadores em melhoria contínua”. Pragmático, Fernando Leal da Costa acredita no serviço público e faz a defesa do SNS. Entende que o setor privado, em áreas como a saúde, deve ser complementar, mais do que substitutivo. Empenhado em mudanças, rejeita a política mediática e compromissos paralisantes. Defensor de um Estado interventivo e solidário, é partidariamente independente, mas politicamente comprometido. Afirma-se como um europeísta de culturalidade múltipla.Convicto das suas ideias e com um posicionamento em que rejeita a facilidade do “politicamente correto”, o secretário de Estado Adjunto do ministro da Saúde dirige uma equipa de pessoas ligadas à saúde pública e ao ensino. Sem ter saudades de ser médico, porque, tal como refere, nunca o deixou ou deixará de ser, Fernando Leal da Costa confessa que há dias em que “sente saudades de voltar a fazer clínica, de falar com doentes, de pensar em soluções para problemas pessoais de gente concreta, com cara e nome”. Para o pós-troika, o secretário de Estado acredita num SNS “que use melhor os recursos e desperdice ainda menos”.

 

Há cerca de três anos deixou a Hematologia para ser secretário de Estado Adjunto do ministro da Saúde do XIX Governo Constitucional. O que é que o levou a aceitar este cargo?

Em meados de 2011 Portugal estava a viver um dos momentos de maior incerteza da sua História recente. Um momento económico e social de grande exigência. O Serviço Nacional de Saúde (SNS), como grande fator de coesão nacional, tinha um enorme desafio pela frente. Por isso, entendi dizer sim a este apelo. Nessa altura, estava a trabalhar na Casa Civil da Presidência da República. Senti que tinha a obrigação de aceitar um cargo executivo, mesmo que num quadro de governação predeterminado pelo memorando do Plano de Assistência Económica e Financeira (PAEF). Tendo trabalhado sempre no SNS, entendi que tinha o dever de contribuir para que o serviço público de saúde pudesse ganhar com o programa de ajustamento.

 

Foi mais complicado ser consultor do Presidente ou ser secretário de Estado?pag 12_JCF_0098

São coisas muito diferentes, em órgãos de soberania diferentes, com funções e modos de funcionamento diferentes. O papel de um consultor da Casa Civil é responder a questões concretas e, quando necessário e requerido, ajudar técnica e politicamente o Presidente da República. O Presidente é um órgão unipessoal com uma voz própria e única. Cultiva-se a discrição entre os colaboradores de Belém, o que é fundamental para o equilíbrio democrático. Trabalha-se muito e com recato. Devo confessar que foi uma experiência política e pessoal inigualável, muito formativa, com uma equipa de pessoas de grande competência que me ensinaram muito. No Governo é diferente, a exposição é muito maior e é necessária. Um membro do Governo fala em nome próprio sem, contudo, deixar de comprometer o Executivo com o  que diz. Mas o trabalho de equipa e a confiança entre as pessoas têm a mesma dimensão. Digamos que o trabalho como secretário de Estado, embora continue a ser o de ajudar, sendo uma função executiva,  acaba por ter uma componente de decisão que não existe na função de consultor da Casa Civil.

 

O exercício deste cargo constituiu e continua a constituir uma continuidade do seu trabalho no SNS?

Posso dizer que sim. Antes trabalhava por dentro do SNS, nos corredores do Serviço Nacional de Saúde. Agora, continuo a trabalhar para o SNS noutro lado, com outras ferramentas, mas para as mesmas pessoas. O meu desafio de hoje é desenvolver políticas para garantir melhor saúde e para que a crise afete na menor dimensão possível os bons indicadores já alcançados. Na verdade, apesar da austeridade e não obstante muitos considerarem impossível, há indicadores em melhoria contínua.

 

Já conhecia o ministro Paulo Macedo?

Não, embora todas as pessoas que eu conhecia que com ele já tinham trabalhado eram largas nos elogios ao seu caráter e profissionalismo. Na Casa Civil cheguei a escrever, em nota de apreciação política, que o ministro precisaria de “ser acompanhado por pessoas que conheçam muito bem o meio – e não chega ser médico para isso –, sejam reconhecidas pela sua competência, tenham um discurso consonante e sejam persistentemente coerentes na ação”. Mal imaginava que dias depois estaria em posição de ser convidado a ajudar o ministro. Não podia recusar, e a primeira conversa que mantivemos foi decisiva. Percebi que ambos tínhamos consciência das dificuldades que iríamos encontrar e tive a confirmação do elevado espírito de serviço público de Paulo Macedo. Foi também excelente reencontrar Manuel Teixeira, que já conhecia e por quem tinha já uma grande admiração. Julgo que temos uma equipa coesa e com verdadeira amizade forjada no “combate” por um Portugal melhor.

 

Médico ou político? O que leva um médico a ser político? Considera que há políticas de saúde que só um médico pode conceber e desenvolver?

Há quase 10 anos, numa outra entrevista, disse que os médicos têm uma propensão especial para a política. A nossa profissão permite conhecer as pessoas, gente em sofrimento, permite sentir e medir o que há de bom e mau na vida, de uma forma muito intensa e peculiar. Permite entender a alegria e a tristeza de uma forma funcional, o que ajuda, para se fazer boa política. Infelizmente, há poucos médicos na política. E, concordo, há muita coisa na política de saúde que só um profissional de saúde pode entender e fazer.

 

pag 14_JCF_0160Sente que há uma fronteira entre o médico e o político? Onde termina um e onde começa o outro?

Não sinto uma fronteira. Não há antagonismo entre as partes. Pelo contrário, fazem o meu todo. Completam-se e completam-me. Todos os dias tento ser e fazer melhor, ultrapassar dificuldades e encontrar soluções. Viver sem parar de olhar para o que me rodeia. Preparar resoluções, tomar decisões para melhorar a vida dos portugueses e preparar o futuro. Perceber o hoje e trabalhar para o amanhã. Em teoria, todos nós podemos ser políticos. Há, no entanto, caraterísticas que considero muito importantes para o exercício da política: bom senso, uma certa dose de humildade, ambição e ser empático, perceber o que as pessoas desejam e de que necessitam, para procurar ajudá-las. Acho que os médicos têm estas caraterísticas naturalmente.

 

E a Oncologia, onde fica?

Sou originalmente um hematologista que se diferenciou em Oncologia Hematológica. Fui treinado dessa forma. Acabei por me interessar por doenças cancerosas porque me envolvi, ainda quando era interno, em quimioterapia de alta dose, o que é uma forma de tratar algumas neoplasias. Muito imperfeita, devo reconhecê-lo, mas desafiante pela toxicidade envolvida. Tive a sorte de ser dos primeiros, em Portugal, a fazer quimioterapia com doses muito altas e autotransplantação de medula óssea. Há 20 anos foi uma “aventura científica”. A boa medicina, salvar vidas, pode ser mais gratificante do que ser secre tário de Estado, embora em ambas as funções se esteja ao serviço da comunidade e a colocar o nosso saber ao serviço do bem comum. A política em Portugal continua a precisar de gente nova, de “sangue novo”, com novas abordagens e perspetivas.

 

Sente saudades de ser médico?

Não tenho saudades de ser médico porque nunca deixei nem deixarei de o ser. Mas, confesso que há dias em que tenho saudades de voltar a fazer clínica, de falar com doentes, de pensar em soluções para problemas pessoais de gente concreta, com cara e nome, que nos pede ajuda. Tenho saudades de só estudar medicina. O tratamento oncológico e o cancro, por muito desgastante que possa ser, por muitos desgostos que nos deem, também dão uma alegria inimaginável quando conseguimos “vencê-lo”, mesmo que só por uns tempos. Adiar a morte e melhorar a vida são desafios gratificantes. No entanto, também sei que, quando deixar de ser secretário de Estado Adjunto do ministro da Saúde, vou sentir falta das grandes decisões, do pensamento “macro”, da luta que é ajudar a governar bem, e até das polémicas parlamentares. Tenho a sorte e o gosto de viver muitas vidas numa só e todas quase ao mesmo tempo. Tento que as minhas vivências acumuladas possam ser úteis aos outros.

 

Mantém contacto com os seus doentes?

Agora menos, infelizmente. Mas é muito bom quando encontro alguma das pessoas que tratei, às vezes acontece. Até já tive a felicidade de ser procurado por doentes e familiares em cerimónias públicas. Sempre que isso acontece, sinto que fiz algo importante por alguém e para alguém. Nestes momentos, sinto ainda mais justificação no que quero fazer.

 

De que forma é que o conhecimento que tem da realidade do SNS, da doença, das dificuldades dos doentes e das suas famílias, o ajuda na decisão política?

Conheço bem os hospitais e as dificuldades que tinham e têm. Acima de tudo aprendi que uma palavra dita na altura certa, ouvir com atenção, observar, são mais úteis do que muita tecnologia. Também aprendi, duramente, que a palavra errada, a expressão desadequada que se exibe, a desatenção que se tem, são mais graves do que um desempenho intelectualmente irrepreensível. Quem passa uma parte substancial da sua vida a lidar com pessoas e com a dor, adquire estratégias de decisão com a ponderação simultânea de muitos fatores. Isso tem-me ajudado muito. Acima de tudo aprendi que não decidir, quando é preciso decidir, tem custos potencialmente irremediáveis. Há um tempo biológico, social e pessoal que tem de ser aproveitado. Há momentos que não podem ser antes, nem deixados para depois. É mesmo verdade que só se vive uma vez. Por tudo isto, tendo visto o sofrimento e sendo capaz de compreender as angústias da doença e de tudo o que a rodeia, é que me parece essencial que a discussão política sobre o sistema de saúde seja feita com grande respeito por quem perdeu a saúde. O debate do setor da Saúde não pode ser uma luta com acusações sem sentido, em que os doentes e os seus casos são explorados para proveito dos partidos. É disto que eu não gosto na política: da manipulação da verdade, da crítica destrutiva e do insulto. Aceito que me critiquem, mas irrito-me com comentários absurdos, ignorantes até, em especial vindos de quem nunca viu a doença, a dor, o desespero, como eu já os vi.

 

E como o têm avaliado os seus pares? Tem tido feedback sobre esse “escrutínio”?pag 19_JCF_0126

Todos os portugueses, onde se incluem os médicos, foram sujeitos a contingências profissionais muito duras. Mas devo dizer que os profissionais de saúde, em geral, souberam estar à altura das dificuldades e zelar pela qualidade do SNS. Mas, para mim, o mais importante é o que pensarão as pessoas em geral do meu trabalho, depois de terminado. O facto de ser médico é uma mais-valia que eu coloco ao serviço dos outros e não, necessariamente, dos médicos. Só quem não me conhece é que poderia julgar que iria favorecer um grupo profissional em detrimento de outro ou, pior ainda, com prejuízo dos interesses do país.

 

Quando aceitou o desafio de ser secretário de Estado, o que esperava fazer?

Oh, muito mais do que fiz até hoje! Sinto que devo aos doentes que deixei no IPO, a todos os meus doentes, a obrigação de trabalhar para que o SNS evolua. Se, no fim deste tempo de governante, concluir que nada foi alterado, terá sido uma perda de tempo e uma traição aos “meus” doentes. Mas creio que não será. O problema é o excesso de imobilismo que sinto demasiadas vezes. O processo legislativo é de uma morosidade aflitiva. Para quem estava habituado à rapidez, é desconcertante. É preciso coragem para decidir, decidir sozinho quando é indispensável e assegurar consensos quando eles são imprescindíveis. Não se pode ficar paralisado pela necessidade de compromisso. Ainda há coisas que temos de mudar, mudar muito, na saúde. Logo, num campo onde todas as mudanças são sempre vistas com receio e há interesses que não aceitam qualquer tipo de mudança.

 

Tudo indica que teremos eleições legislativas lá para setembro de 2015. Estamos a cerca de ano e meio do fim do mandato do Governo. Que balanço faz destes quase três anos de governação?

Que ainda há muito para fazer! Até agora foram anos muito exigentes, marcados pela necessidade, diria mesmo obrigação, de conter despesas e de melhorar a eficiência sem prejudicar a parte assistencial e o acesso. Desse ponto de vista, considero que o Ministério da Saúde conseguiu cumprir este objetivo.  O SNS continua a desempenhar o seu papel como referencial na prestação de cuidados de saúde em Portugal. Temos indicadores de saúde a melhorar continuamente, o acesso aos cuidados tem vindo a crescer, as pessoas pagam globalmente menos pelas prestações de saúde, os mais desfavorecidos estão mais protegidos. Somos o ministério que continua a contratar mais recursos humanos.

 

O Ministério da Saúde continua a ser o maior empregador nacional?

Só em 2013, contratámos 1700 novos internos. Por outro lado, aprofundámos legislação de Saúde Pública, divulgámos dados com uma metodologia e transparência até agora inexistente. Enganaram-se os que duvidaram da capacidade de o SNS suportar e, em alguns casos, contrariar os efeitos da crise. Os profissionais de saúde, dos médicos aos auxiliares e aos gestores, têm sabido afirmar-se ao melhor nível, apesar das dificuldades e desafios que o momento impõe. Diria que superaram as expetativas. Admito que o esforço e a exigência foram grandes, mas uma análise neutra e justa reconhecerá que o SNS continua a dar a resposta que a população espera dele.

 

JCF_0223Falou em projetos por concretizar. Quer especificar em que áreas considera que é preciso acelerar ou reforçar a sua intervenção política?

Governar é um processo necessariamente inacabado. Há sempre coisas para fazer de novo ou para aperfeiçoar. A dinâmica social, a economia, as finanças, enfim, há tantos fatores que vão mudando que obrigam a respostas sucessivamente adaptadas. Há desafios muito imediatos que queria concretizar como o da equidade na distribuição de recursos humanos pelo país, a melhoria da articulação entre níveis de cuidados, a maior capacitação e dignificação de profissionais médicos e não médicos. Também queria trabalhar na racionalização dos atos diagnósticos e terapêuticos, no processo de auditoria da prática de cuidados de saúde, na legislação e na prática preventiva, bem como sobre o consumo de tabaco, o excesso de  sal na alimentação e a falta de exercício físico.

 

Houve desilusões?

Já levo algumas. Considero que a saúde ainda não tem a visibilidade política que deveria ter. Entendo que ainda não se avaliam, como deveria ser, os impactos de todas as políticas na saúde. A maioria dos políticos, não só em Portugal, ainda não tem a visão de que a saúde deve ser o centro de uma sociedade com bem-estar, e isso reflete-se na falta de conhecimento económico e social sobre o que significa ter um país saudável. O Governo teria a ganhar se todos os ministros incorporassem a componente “ganhos em saúde” nas suas decisões políticas, pese embora se tenha feito um esforço para ter efetivamente “saúde em todas as políticas”. Não tanto quanto a OMS defende, mas muito melhor que qualquer Governo anterior. Basta ver a profusão de temas de saúde que o Conselho de Ministros tem discutido e a legislação aprovada.

 

Depois de um largo período de boas graças, o Ministério e o ministro da Saúde têm sido alvo de contestação. Até que ponto a austeridade está a afetar o SNS?

Nunca se tentou fazer uma análise profunda e neutra dos impactos das medidas reformadoras que temos desenvolvido até agora. Repare que, hoje em dia, se dedica mais tempo ao comentário de casos pontuais do que ao estudo dos indicadores, das estatísticas globais e das tendências, ferramentas decisivas para construir e tomar decisões para o futuro. Porquê? Porque não se consegue continuar a insistir na tónica da falência do sistema e porque dá mais trabalho estudar os números e os indicadores do que tirar conclusões imediatas e populistas de um caso pontual mediatizado. O futuro não é só o amanhã. Temos que ter visão e trabalhar para o médio e longo prazo. No entanto, apesar dos resultados de saúde serem globalmente satisfatórios, devo reconhecer que a divulgação destes casos tem um aspeto muito positivo. O conhecimento de falhas potenciais e dos casos de erro permite-nos ir afinando soluções numa perspetiva corretiva e passar a uma fase seguinte do processo da governação na Saúde. Estamos agora a olhar para outras áreas que foram muito esquecidas por quem nos antecedeu, em particular no que diz respeito à qualidade clínica, à segurança dos doentes e à prevenção das doenças. Sabemos como a disponibilidade financeira, o emprego, a habitação, a segurança pública, o acesso a alimentos, etc., são afetados por processos de crise económica e de estagnação no crescimento, no entanto, a verdade é que ainda não há indicadores que mostrem impactos reais no desempenho do SNS ou nos indicadores de saúde. Em boa verdade, ainda é cedo para poder apreciar os efeitos da austeridade no SNS, e não se podem usar experiências anteriores porque os fatores entre as crises e as zonas geográficas das análises variam muito. Nem existe muita bibliografia sobre crises anteriores e todas tiveram aspetos positivos e negativos na saúde, mesmo que isso possa parecer estranho. Dizer o contrário é propaganda e invenção. Mas também seria falso dizer que os bons indicadores querem já dizer que não houve efeitos da crise. Não tenho dúvida de que poderão existir situações relacionadas com a saúde mental, para dar um exemplo muito holístico, que estão a ser afetadas negativamente, e isso, por si só, pode condicionar muito a saúde física das pessoas. Mas a forma como isso está a acontecer não é ainda clara, tal como não se pode falar levianamente de aumentos de depressão e suicídios sem o poder demonstrar.

 

JCF_0229O Ministério da Saúde tem sido apontado como o melhor aluno da troika. Concorda com as reformas propostas pela troika?

Acredito que usámos bem as reformas propostas pelo Memorando de Entendimento que o anterior Governo negociou com a troika. Seria o meu Memorando? Talvez não. Se tivesse tido alguma intervenção no seu desenho, teria tido uma visão mais preventiva e mais assertiva quanto a questões de mobilidade de pessoal, avaliação de tecnologias, e não teria sobrevalorizado certas formas de prestação de cuidados que o anterior Governo tinha concebido e que os signatários do Memorando aceitaram sem discutir. Mas este Memorando tem servido para ajudar a melhorar o SNS. Sermos alunos da troika, é que não me parece. A troika aprendeu mais connosco do que nós com ela. Temos governado de forma a conseguir a recuperação da credibilidade internacional. Conseguimos impor alguns pontos de vista que foram aceites e reconhecidos. Demonstrámos a nossa capacidade de melhorar a eficiência e combater o desperdício do SNS. Desde logo saliento o combate à fraude.

 

O Ministério da Saúde foi mais “troikista” que a troika?

Esse chavão que se instituiu para desvalorizar, em vez de sublinhar, que se conseguiu cumprir as metas do acordo não faz sentido. Não faz sentido, vem fora de tempo, ouvir aqueles que chamaram a troika, negociaram e assinaram o acordo, criticarem agora quem tudo fez para honrar esses compromissos. O êxito deste Governo é o êxito de Portugal. Teriam preferido ver um segundo resgate? Um SNS desfeito? Sugiro que se faça a pergunta inversa: o que teria acontecido ao SNS, e a quem dele mais precisa, se não fossem tomadas as medidas que foram tomadas? Já nos esquecemos que, à semelhança do que aconteceu na Grécia, houve indústria farmacêutica a cortar o fornecimento de medicamentos por falta de pagamento? Qual a principal reforma que destaca na área da Saúde? Acho que o mais importante foi termos introduzido racionalidade na decisão. Não se cortou “cegamente”, como afirma o discurso oposicionista. Cortou-se no desperdício e reduziu-se no custo dos preços, mas não na assistência. Nunca tanta gente teve tantos remédios tão baratos. Controlámos um processo desgovernado de criação de unidades de cuidados continuados, olhámos para a prestação como um todo e introduzimos ideias e conceitos como as linhas de orientação clínica  e a prescrição por princípio ativo. Fizemos da transparência uma rotina: hoje divulgamos, periodicamente, quadros de monitorização e dados de benchmarking. Procuramos ter instrumentos que permitam decidir com fundamentação e agir onde é preciso. Instrumentos para comparar o passado e que servirão para nos avaliar no futuro. O SNS de hoje é o resultado do trabalho de governos sucessivos com uma orientação clara sobre o direito à proteção da saúde. Por isso, esta é uma área em que os portugueses teriam muito a ganhar se os partidos não comunistas, aqueles que têm uma visão democrática e humanista de um Estado solidário e plural, ultrapassassem diferenças para se concentrarem num entendimento e garantissem que não haja retrocesso em nome de conveniências pessoais e de estratégias de conquista de poder.

 

Quer dizer um entendimento político entre o PS, PSD e CDS?

Um entendimento que envolva toda a área social-democrata e democrata-cristã, deixando de fora, infelizmente, os que já se excluíram da Europa, como os comunistas do PCP, dos Verdes e do Bloco de Esquerda. A Saúde é a área de excelência para tecer as bases de um acordo abrangente com matriz social que respeite os valores democráticos. Na Saúde, até a esquerda mais radical, tem pontos de contacto com a atual maioria e deveria ser mais concordante no combate às rendas excessivas. Seria bom que o PS estivesse disponível para acompanhar o Executivo na visão reformista que é necessária para garantir um Estado solidário, numa perspetiva de coesão europeia. Continuar a defender a aquisição de dívida ou a procrastinação no pagamento da que já temos, sem cuidar de rever a prestação do sistema de saúde, é demagogia. Os portugueses já estão cansados de argumentação em ricochete e de discussões estéreis, em algumas vezes pouco edificantes. A pergunta que as pessoas fazem é simples: “E se o PS estivesse no Governo, o que faria?”

 

A sua área de intervenção tem privilegiado muito os jovens. Agiu atempadamente nas smartshops.

Tinha de o fazer. As áreas da prevenção da doença são da minha esfera de competências, e acredito que quanto mais cedo fizermos prevenção, mais possibilidades teremos de criar uma sociedade saudável. Foi o que aconteceu. Agimos tão cedo quanto possível e agimos bem. Não ganhámos a guerra contra as drogas, mas ficou claro que não há drogas boas. Pelo menos houve a eliminação da fraude, que era a venda para uso humano de produtos tóxicos, como se fossem substâncias inócuas e destinadas a ser outra coisa. Já não temos conhecimento de casos de morte, inclusivamente de jovens, por intoxicação com as drogas que eram vendidas nesses estabelecimentos.

 

Voltando à intervenção junto dos jovens, sempre defendeu que a lei do álcool devia ter ido mais longe. Foi derrotado nos seus propósitos?

Não me considero derrotado. A lei foi aprovada em Conselho de Ministros do Governo a que tenho a honra de pertencer. Serei sempre solidário com as decisões do Governo e registei as razões que sustentaram o modelo seguido. Avançámos muito com a nova legislação em que o Governo anterior não tocou. A lei não tinha sido alterada nos últimos 11 anos, não obstante as campanhas mais ou menos agressivas sobre o consumo. Continuo a considerar que deveríamos ter ido mais longe, mas acabaremos por chegar lá. Há políticas e ideias que precisam de tempo para serem ponderadas e amadurecerem. Um dia teremos de assumir que devemos impedir a venda de todas as bebidas com álcool a menores e devemos ser capazes de proibir a publicidade de bebidas alcoólicas em festas de juventude e em eventos desportivos ou culturais. Temo que vai ser mais difícil mudar as regras de publicidade do que proibir a venda de todas as bebidas com álcool a menores. Não é uma questão económica que está na base deste meu receio. É uma permissividade social ao álcool que tem de ser progressivamente alterada, sem que se caia no extremo de achar que todo o consumo é errado. Nos menores de 18 anos é imperativo não beber álcool, mesmo que invoquemos argumentos contrários baseados na tradição ou nas nossas experiências pessoais de juventude, porque há evidência científica que o demonstra. O mais importante, antes de mudar a lei, é fazer com que os pais e a sociedade entendam isto.

 

Em relação ao tabaco, o que podemos esperar da nova lei? Que alterações ao atual quadro vão ser introduzidas?

Proteger os fumadores, os não fumadores, os trabalhadores e os mais jovens. Entendo que devemos corrigir o que a lei atual tem de errado, eliminando progressivamente os espaços de uso público onde ainda se pode fumar. A ideia é transpor a última diretiva europeia aprovada e juntar medidas que levem à eliminação progressiva, num prazo razoável, dos espaços para fumadores. Acredito que os menores não devem poder permanecer nas áreas destinadas a fumadores e que os trabalhadores têm o direito de ser protegidos da exposição involuntária ao fumo do tabaco.

 

Porquê esta ação tão determinada junto dos jovens?

Porque os jovens são o grupo onde devemos começar a atuar para conseguir os resultados mais significativos na diminuição da carga de doença, condição essencial para garantir a sustentabilidade do SNS. Temos de ter menos mortes prematuras e menos jovens precocemente doentes. Temos de ser capazes de ter menos jovens a fumar, a beber, a consumir drogas, da mesma forma que precisamos que aprendam a comer melhor, apreciem sopas e fruta, façam mais exercício e, na idade adequada, usem mais preservativos e evitem comportamentos de risco. Com isto podemos prevenir quase todas as principais causas de morte abaixo dos 70 anos de idade. E os jovens são um excelente veículo de informação para os mais velhos, muito em especial para as suas famílias.

 

Recentemente a TSF divulgou um estudo sobre o impacto da saúde na economia, com percentagens de absentismo e produtividade. Até que ponto a saúde também faz bem à economia?

Não há boa economia sem saúde e não há saúde sem boa economia. Os países com piores índices económicos são os que têm piores níveis de desenvolvimento humano e de saúde. Por outro lado, sociedades muito desiguais, mesmo que tenham crescimentos económicos significativos, se não cuidarem da saúde das suas populações terão um acentuar das desigualdades e perda de capital humano que as levará a perder competitividade. Não é só uma questão ética e moral. O combate às desigualdades continua no centro da agenda política europeia. Mais desigualdade implica, por exemplo, menos esperança de vida e maior mortalidade infantil. Contrariar estes efeitos, quando há maior pobreza numa sociedade, obriga a gastos maiores de recursos que poderiam ser usados noutro local da economia. Muitos países acabam, em nome do crescimento económico a dois dígitos, por desistir de cuidar da saúde das populações, o que acaba por se refletir na qualidade de vida de todas as pessoas, ameaça a sua segurança e bem-estar e retira potencial humano ao país. Por tudo isto, ainda mais num período de uma forte crise internacional, foi preciso travar a espiral de endividamento que iria acabar por retirar recursos vitais ao SNS. A nossa política tem sido o combate ao gasto excessivo e ao desperdício, à fraude e não aos níveis de assistência. Os indicadores que temos atestam que a escolha foi acertada.

 

Ultimamente temos ouvido falar muito da necessidade urgente da reforma dos cuidados de saúde primários. O que ainda falta fazer? O que tenciona fazer?

A maior falha da reforma, a que foi concebida há quase 10 anos atrás, reside na existência de duas velocidades, com desvalorização do trabalho daqueles que optaram por não estar em Unidades de Saúde Familiar (USF). Isto é verdade para todos os profissionais, não só para os médicos, e tem de ser corrigido. É preciso fazer uma avaliação correta, à luz de critérios mais atuais, do que as USF acrescentaram ao SNS. Não aceito o endeusamento de conceitos ou de estruturas herméticas. O que já foi o melhor modelo tem de demonstrar que ainda o é. Por outro lado, estamos com carências graves de médicos, que precisamos de colmatar. O maior problema dos cuidados primários tem sido a falta de médicos, consequência do desenho do sistema, de que o setor privado se tem aproveitado para controlar a oferta de serviços. Houve excesso na definição dos numerus clausus para as faculdades. Há falta de novos especialistas e há médicos a reformarem-se para acumularem a reforma com a prática privada, explorando a escassez de oferta que a sua aposentação agravou. Estamos a trabalhar na resposta a esta situação com melhor organização da prestação, recorrendo ao uso inteligente de incentivos e, se necessário, contratar médicos estrangeiros por períodos de tempo limitados. Mas a solução da distribuição de recursos humanos só se fará com diálogo construtivo, longe do espírito corporativo, com os sindicatos, as ordens profissionais e as instituições de ensino superior.

 

Foi subdiretor-geral da Saúde. Tem uma forte ligação à Escola Nacional de Saúde Pública. Integrou o gabinete reformador do ministro Correia de Campos. Que leitura faz dos recentes indicadores de saúde? Houve regressão como tem sido apontado?

Continua a haver melhoria em muitos indicadores e isso é gratificante para o decisor político. O que é mais significativo, numa conjuntura como a que o país atravessa, com consequências no estado geral da população, é termos dados que nos permitem dizer que houve melhoria. Muitas opiniões que lemos ou ouvimos são feitas na base do “acho que”. É pouco e não é sério. Há que estudar os dados. Os indicadores mostram que se morre menos, e morre-se mais tarde. Há menos SIDA, menos tuberculose. Contudo, há indicadores sobre diabetes e sobre o consumo de tabaco que me deixam muito preocupado e exigem ação rápida e eficaz. Há também mais oportunidades para tratamento oncológico ao mesmo tempo que há mais cancros. Precisamos de saber mais sobre a saúde mental dos portugueses, mas é incorreto afirmar que há mais suicídios e mais depressões, antes de termos a verificação dos dados. Estamos a fazê-lo. Acima de tudo, o que queremos é ter certeza nos dados e correção nas análises para podermos decidir a bem da população.

 

Que SNS pós-troika vamos ter?

Um SNS que use melhor os recursos e desperdice ainda menos. Desejo um sistema com participação e envolvimento de mais atores, incluindo o setor social e os privados, com uma articulação mais perfeita e de que resulte sinergismos. Temos eliminado redundâncias e acabaremos por ter um setor social e privado que consiga subsistir pelos seus méritos e não pela ajuda do Estado. Iremos ter um SNS que perdure na racionalidade das suas escolhas e em que os cidadãos sejam mais conscientes da necessidade de colaborarem ativamente na proteção da sua saúde. O período do PAEF teve o mérito de demonstrar que podemos fazer melhor, mesmo quando os recursos escasseiam. Espero que o futuro nos permita recuperar riqueza suficiente para investir com ponderação onde for necessário, sem que se voltem a construir centros de saúde que não eram necessários e nunca funcionaram, nem unidades de cuidados continuados em povoações sem habitantes que as justificassem, nem hospitais sem clientes, ao mesmo tempo que se deixaram de fazer coisas importantes e necessárias.

 

Trocou a medicina pela política. E hoje, como se sente? É médico ou político?

Não troquei. Adicionei mais política à medicina e mais medicina à política. A profissão é uma parte significativa da nossa circunstância, como diria Ortega y Gasset. Acima de tudo, sinto-me mais completo do que quando vim para o Governo. Tive a sorte de encontrar uma equipa coesa, pessoas que me ajudam muito. Devo-lhes uma parte do que sou hoje. Acho que era a parte que me faltava para ser mais médico e melhor pessoa. Há uma canção do Hector Zazou de que me lembro às vezes: “This is a voyage, a long, long, voyage”. Há que fazê-la sem medo, sem compromissos paralisantes, com noção da responsabilidade e consciente de que a decisão política serve o bem público.