“O PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA TEM UM DESAFIO PERMANENTE, QUE É O DA REPRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL E EXTERNA DO PARLAMENTO”
Eduardo Ferro Rodrigues é o presidente da Assembleia da República (AR). Assumindo–se como “o presidente de todos os deputados”, afirma que, em Portugal, estamos perante “uma democracia consolidada”, tal como designado pela ciência política, isto porque “temos todas as instituições próprias de uma democracia madura”, sublinha o presidente da AR. Acreditando numa “democracia de proximidade”, Ferro Rodrigues afirma que não é indiferente ao “crescente sentimento de desconfiança em relação às instituições democráticas” e que, por isso mesmo, tudo fará para que a Assembleia da República possa “adequar-se à revolução digital que está em curso e assim aproximar-se mais e melhor dos cidadãos que representa”. Para o presidente da Assembleia da República, o novo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, é o “homem certo no momento certo”, pois afirmou-se como alguém empenhado em “contribuir para sarar as feridas políticas que se somaram às feridas sociais e económicas do período de ajustamento que o país tem vivido nos últimos anos”. Para Ferro Rodrigues este posicionamento é “o certo”, no momento que o país atravessa.
Quais são, neste momento, os principais desafios que se apresentam ao presidente da Assembleia da República?
O presidente da Assembleia da República tem um desafio permanente, que é o da representação institucional e externa do Parlamento. E depois vai tendo desafios mais conjunturais. Neste momento estou particularmente empenhado no desafio das comemorações dos 40 anos da Constituição da República Portuguesa, que reputo da maior importância. A Constituição resistiu à prova do tempo, como disse Henrique de Barros, presidente da Constituinte. É o garante das regras do jogo democrático que todos respeitamos e dos direitos sociais e culturais que fundamentam as políticas públicas. Ao mesmo tempo, o exemplo que os constituintes deram há 40 anos é de uma enorme atualidade: partindo de posições muito distintas, convergiram, no essencial, no programa de desenvolvimento democrático da Constituição da República Portuguesa.
Quais serão as principais reformas que pretende levar a cabo?
As reformas estruturais e mesmo as reformas do sistema político competem em primeiro lugar ao Governo e aos deputados representados na Assembleia da República. O presidente da Assembleia é o presidente de todos os deputados. Mas não é um presidente indiferente. Não sou indiferente ao crescente sentimento de desconfiança em relação às instituições democráticas e, por isso, tudo farei para que a Assembleia da República possa adequar-se à revolução digital que está em curso e assim aproximar-se mais e melhor dos cidadãos que representa. Acredito numa democracia de proximidade.
Que balanço faz destes primeiros meses enquanto presidente da Assembleia da República?
Fui eleito no dia 28 de outubro de 2015. Passaram menos de seis meses, de uma agenda parlamentar intensa, com dois governos a tomarem posse, dois programas de Governo, a posse do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e, mais recentemente, a conclusão da discussão do Orçamento do Estado para 2016. Foram meses muito intensos, a que se soma a já referida preparação das comemorações dos 40 anos da entrada em vigor da Constituição de 1976 e inúmeras tarefas de representação do país. Foram meses cheios, com mudanças visíveis na nossa cultura parlamentar, mas faço um balanço muito positivo.
Quais são os seus maiores receios?
Não usaria a palavra receio. Prefiro dizer que, quando iniciei funções, o clima político era muito agitado, muito crispado, muito incerto. Como disse o atual Presidente da República, às feridas sociais e económicas da austeridade juntaram-se feridas políticas. Foi necessário começar a sarar essas feridas, e acho que isso tem sido feito de forma natural, com o empenho de todos.
Para além de ser presidente da Assembleia da República, quais são os deveres da segunda figura do Estado?
Um desses deveres, do meu ponto de vista, é contribuir para uma normalização da vida política. A vivacidade do debate, a expressão das diferenças, é compatível com uma cultura de respeito e diálogo. Julgo que o presidente da Assembleia da República deve preservar e respeitar a diferença e, ao mesmo tempo, deve encontrar espaço e mecanismos de discussão e reflexão, nomeadamente daquilo que é estratégico e que, por vezes, é ocultado pela espuma dos dias.
Há 24 anos que não se assistia a um duelo pela cadeira do número dois da hierarquia do Estado. Que leitura faz deste facto?
Ao longo de 40 anos de democracia tivemos várias situações de disputa, perfeitamente normais e conformes à Constituição e ao Regimento. Uma vez eleito, fiz questão de adaptar e de me apropriar de uma frase do presidente Mário Soares: “serei o presidente de todas e todos os deputados”.
Muito se debateu sobre ter “quebrado a tradição” aquando da sua eleição, uma vez que foi o primeiro presidente eleito que não saiu do partido que estava no poder ou da coligação vencedora. Como vê este novo ciclo?
Não se pode falar de uma tradição e ao mesmo tempo convém lembrar que no passado já havíamos tido disputas eleitorais para o cargo. Nunca aconteceu no passado o candidato do segundo partido mais representado na Assembleia ser eleito presidente. Aconteceu agora porque pela primeira vez há uma maioria no Parlamento com uma orientação de política económica e social que não corresponde à orientação do maior grupo parlamentar, que é o PSD. Quanto ao novo ciclo, constato que se fechou um ciclo eleitoral, com a eleição do Presidente da República, e que começa um novo ciclo político em que já não temos, de um lado, partidos naturais de governo e, do outro, partidos reduzidos à posição de protesto. Os partidos que suportam o Governo têm responsabilidades acrescidas em matéria de política orçamental, mas há todo um conjunto de políticas, relacionadas com matérias de soberania, de assuntos europeus e de reformas estruturais, que permitem, porventura, uma geometria de apoio alargada e variável.
Qual é a lógica desta “tradição”? Um presidente da Assembleia da República não deve garantir, ao máximo, a sua imparcialidade e isenção? Ao estar ligado ao partido no poder não poderá ter uma conduta algo tendenciosa?
Discordo, e até acho que essa pergunta não faz justiça ao legado dos meus antecessores: os presidentes António Almeida Santos, João Bosco Mota Amaral, Jaime Gama e à presidente Assunção Esteves, só para falar dos últimos.
Hoje, qual é a sua visão da Assembleia da República? O que mudou da visão que tinha antes de ser representante máximo deste órgão de soberania?
Tenho neste momento o privilégio de poder observar a dinâmica parlamentar a partir daquele ponto mais alto do hemiciclo – e de facto há uma enorme mudança de cultura política que está a ocorrer debaixo dos nossos olhos. Estamos a ser protagonistas de um tempo diferente, e isso exige-nos, de forma acrescida, um grande sentido da responsabilidade e um grande sentido de Estado.
Temos deputados a mais no Parlamento?
Estamos perfeitamente na média dos parlamentos europeus em matéria de rácio deputado por eleitor. E temos uma virtualidade que nos obriga a ter cuidado quando discutimos questões que, muito facilmente, resvalam para o populismo: a pluralidade da representação partidária na Assembleia da República é um bem em si.
Temos deputados com a mesma qualidade que tínhamos em 1974?
Isso é sempre relativo. As circunstâncias são diferentes, e os perfis dos protagonistas também. Por vezes, há uma certa nostalgia, que eu compreendo, mas o que noto nos debates parlamentares é a emergência de uma nova geração, combativa, qualificada, com grandes competências políticas e uma nova capacidade de relacionamento com os media.
Gostaria que existisse um maior equilíbrio de representação entre homens e mulheres na Assembleia da República?
Gostaria. Mas, também nesse capítulo, temos evoluído e julgo que essa evolução tem uma enorme virtude: não voltará atrás. A tendência será sempre para uma participação cada fez maior das mulheres, não só na AR, mas em todas as áreas.
Faltam, em Portugal, mulheres em cargos de liderança no próprio aparelho de Estado?
Sem dúvida, e não apenas no aparelho de Estado, mas também nas grandes empresas cotadas, na administração das universidades, etc. Ainda assim, há exemplos importantes que podem servir de estímulo para que haja mais mulheres na linha da frente da vida política. A minha antecessora era uma mulher, Assunção Esteves; Maria de Belém foi presidente do PS; a líder do CDS é uma mulher, Assunção Cristas; Ana Catarina Mendes é secretária-geral adjunta do PS; o PSD também já teve uma mulher a liderar o partido, Manuela Ferreira Leite. Há muitas mulheres ministras e secretárias de Estado. O caminho é este, é um bom caminho, no sentido de uma democracia mais representativa e paritária.
Na sua opinião, precisamos de novos partidos?
Não me compete fazer esse juízo. Isso é competência exclusiva dos cidadãos e, em última análise, dos eleitores.
Estamos perante uma democracia madura em Portugal?
Em Portugal estamos perante o que a ciência política chama de democracia consolidada. Há separação de poderes, império das leis, liberdade de expressão e imprensa, pluralismo partidário, representação de interesses sociais na Concertação Social, enfim, temos todas as instituições próprias de uma democracia madura. Mas não quero deixar de afirmar que a democracia tem de ser defendida todos os dias.
Afirmou que Marcelo Rebelo de Sousa oferece à direita e à política em Portugal um “clima de mudança”. O que espera do novo Presidente da República? O que é que os portugueses podem esperar?
O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto candidato, fez questão de expressar uma série de posições que demonstram que está sintonizado com o país. Um Presidente da República que sabe comunicar com o país é um Presidente que vai saber comunicar com todos os órgãos de soberania, com todos os partidos políticos e com todos os parceiros sociais, por igual. É por isso que julgo que o senhor Presidente da República poderá ser o promotor de convergências estratégicas de que Portugal tanto precisa.
Acredita que Marcelo Rebelo de Sousa será capaz de unir estrategicamente o Presidente da República, o Parlamento e o Governo?
Posso testemunhar que essa cooperação está a ser exemplar.
Porque considera Marcelo Rebelo de Sousa o “homem certo no momento certo”?
Repare, ainda na campanha eleitoral, o agora Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou-se como alguém empenhado em contribuir para sarar as feridas políticas que se somaram às feridas sociais e económicas do período de ajustamento que o país tem vivido nos últimos anos. Julgo, e não sou o único que o acha, que esse posicionamento é o certo no momento que o país atravessa.
As quebras do protocolo, por parte de Marcelo Rebelo de Sousa, que tiveram lugar logo na tomada de posse, anteveem um Presidente da República mais próximo de todos os portugueses?
A tomada de posse do senhor Presidente da República foi tratada, até ao mais ínfimo pormenor, entre os seus serviços e os da AR.
Na sua opinião, que Europa temos hoje?
A Europa está numa encruzilhada. Temos tido crises sucessivas, de enorme dimensão. Os atentados terroristas, a crise das dívidas soberanas, a crise dos refugiados, são desafios enormes e que têm que ser encarados de frente. Esta é a Europa que temos hoje, e que corre o risco de deixar de ser, como foi durante muitos anos, um fator de estabilidade política e de consolidação democrática. Não podemos permitir que a Europa, e especialmente que a União Europeia (UE), se transforme num fator de instabilidade política e num motor de fragilização democrática.
O que é que os governos da União Europeia devem fazer para termos uma Europa mais justa e mais humana?
Já fiz esta reflexão e agora repito-a: os europeus devem estar a perguntar-se que Europa é esta tão flexível naquilo que é essencial e tão rígida naquilo que é, apesar de tudo, secundário? Que Europa é esta, rigorosa, como tem que ser, quanto ao cumprimento das regras orçamentais, mas tão complacente quando, por exemplo, estão em causa princípios fundamentais como a liberdade de imprensa, o direito de asilo, a livre circulação de trabalhadores ou a não discriminação em função da nacionalidade? Acho que os governos da UE têm que fazer esta reflexão, rapidamente, porque é como pergunta: a UE é e tem que ser justa, humana e solidária.
O tema dos refugiados está na ordem do dia. A Europa está preparada em termos culturais, económicos, políticos e sociais, para receber os muitos refugiados que todos os dias clamam por ajuda?
Não escondo que a situação é complexa e potencialmente explosiva, até de um ponto de vista meramente humanitário. Eu acompanho António Guterres na avaliação que faz sobre toda esta problemática: a UE tem condições para acolher os refugiados, mas só o conseguirá se agir de forma concertada, aos mais variados níveis. Aliás, pergunto-me se tem alternativa. Se achamos que a Europa não está preparada para os receber, algo tem que ser feito rapidamente porque a situação vai piorar. Repare, estamos a caminho do verão e isso vai aumentar o fluxo de pessoas para a Europa.
Sabemos acolher as diferenças e ser multiculturais? E quem chega saberá respeitar as tradições e os costumes dos diferentes países?
Eu julgo que essas não devem ser as primeiras questões a serem colocadas quando discutimos a questão dos refugiados. São questões a ponderar, mas não as primeiras. A multiculturalidade e o respeito pela diferença são características intrínsecas da Europa.
Qual o papel que Portugal terá de assumir quanto à questão dos refugiados? Para além do que já estamos a fazer, o que é ainda esperado que façamos?
É uma competência do governo. Pelo que tenho observado, Portugal está concertado com o que foi acordado a nível da EU, assumindo, aliás, posições muito avançadas em defesa dos direitos humanos.
Depois da crise económica, social, política, que enfrentámos e continuamos a enfrentar, que Portugal temos hoje?
Não julgo prudente decretarmos o fim de todas as crises. Mas não me quero, nem devo, pronunciar sobre aspetos específicos da atividade política. Prefiro frisar o que entendo serem questões essenciais do Portugal que desejo que tenhamos. A aposta na qualificação e na educação, a política de investimentos e de apoio à inovação e à iniciativa, a sustentabilidade dos sistemas de saúde e segurança social, os incentivos à natalidade e à renovação demográfica, o respeito pelo mundo do trabalho.
Como definiria a política do atual Governo?
Um Portugal em mudança, onde confiança e receios coexistem.
Considera que o Orçamento do Estado apresentado pelo Governo de António Costa, e aprovado pela Assembleia da República, conduzirá Portugal a bom porto?
Foi aprovado pela AR e promulgado pelo Presidente da República nessa perspetiva.
Este orçamento virá resolver os nossos problemas ou, por outro lado, servirá apenas para agradar aos portugueses?
Acho que é evidente que todos queremos que o orçamento ajude a resolver os problemas do país.
Avizinham-se alterações nas comemorações do 10 de Junho. Na sua opinião, qual é a lógica da deslocação das principais figuras de Estado para Paris? O que o fez decidir ficar?
O 10 de Junho é dia das Comunidades. É excelente termos o Presidente da República e o primeiro-ministro fora do país e o presidente da AR em Portugal. Julgo que houve uma preocupação com a aproximação das instituições nacionais aos portuguesas que estão mais afastados da pátria, uma preocupação com as comunidades portuguesas que são um ativo que pode ser muito mais mobilizado para a defesa do interesse nacional. Penso que esta é a lógica que presidiu à escolha de Paris para as comemorações do 10 de Junho. Também teremos comemorações cá, onde estarei presente. A minha não ida a Paris foi uma decisão refletida e conjugada com o senhor Presidente da República.
Qual a sua posição face ao pedido do deputado socialista Ascenso Simões, relativamente à eliminação, já no próximo 25 de Abril, de individualidades externas no espaço do hemiciclo?
Conheço muito bem e há muito tempo o deputado Ascenso Simões. Concordamos muitas vezes, discordamos outras. Neste caso, não concordamos.
Que Portugal teremos daqui a 10 anos?
Daqui a 10 anos já teremos ultrapassado os 50 anos do 25 de Abril. Espero que tenhamos um país mais próximo dos nossos sonhos: um país mais justo e solidário, a crescer e a criar empregos, com oportunidades de realização e mobilidade social para todos. E um país respeitado e com uma palavra a dizer, na Europa e no mundo.