CARLOS CORTES

“É URGENTE IMPLEMENTAR REFORMAS ESTRUTURAIS”

O Serviço Nacional de Saúde (SNS), considerado uma das maiores conquistas da democracia portuguesa, enfrenta uma crise sem precedentes. Ao longo de vários anos, o SNS tem sido um pilar essencial de coesão social e de acesso universal a cuidados de saúde, mas hoje encontra-se fragilizado por uma série de problemas estruturais.

Em entrevista à FRONTLINE, Carlos Cortes, bastonário da Ordem dos Médicos, traça um diagnóstico rigoroso do atual estado do SNS, abordando temas como a falta de profissionais, a sobrecarga nas urgências e as falhas na gestão hospitalar.

Na opinião do bastonário, a má gestão de recursos e a desorganização dos serviços são alguns dos fatores mais alarmantes, que depois se refletem na desmotivação generalizada dos profissionais e numa crescente desconfiança da população. “A desmotivação de todos é evidente. Esses fatores afetam diretamente a capacidade de resposta do SNS e a qualidade dos cuidados oferecidos à população. O resultado é que a confiança dos portugueses no SNS está a diminuir, levando-os a procurar alternativas onde é possível”, conclui.

Carlos Cortes explorou, também, as falhas das políticas de gestão implementadas nos últimos anos, que, na sua opinião, não souberam adaptar o SNS à evolução demográfica e tecnológica do país. “As políticas de gestão na Saúde implementadas nos últimos anos têm falhado, sobretudo na modernização e adaptação do sistema às necessidades reais, à sociedade moderna em que vivemos”, sublinhou.

 Qual é o atual estado do SNS?

O SNS está numa situação delicada. Enfrenta, atualmente, sérios desafios, como a má gestão de recursos, a desorganização dos serviços, a falta de condições de trabalho e a desvalorização dos seus profissionais, nomeadamente dos médicos, que, frequentemente, enfrentam uma grande pressão.

A desmotivação de todos é evidente. Esses fatores afetam diretamente a capacidade de resposta do SNS e a qualidade dos cuidados oferecidos à população. O resultado é que a confiança dos portugueses no SNS está a diminuir, levando-os a procurar alternativas onde é possível. O SNS foi, e permanece, uma das grandes conquistas da democracia portuguesa, sendo um pilar essencial para os cuidados de saúde das populações e um fator único de estabilidade e coesão social. Contudo, em 45 anos, tudo mudou: a demografia, a saúde, as doenças crónicas, a tecnologia, a ciência e a sociedade, tanto para doentes como para profissionais.

Assim, é crucial adaptar o SNS aos desafios atuais, e os governos sucessivos têm falhado em implementar essas mudanças necessárias.

Como vê a questão da falta de profissionais de saúde, especialmente nas urgências?

O Serviço de Urgência é frequentemente onde essa falta se torna mais visível, mas a escassez de médicos é notória em todas as áreas do SNS. Abrange também internamentos, consultas, cirurgias e procedimentos especializados. As condições de trabalho inadequadas, a pressão permanente, a desorganização das tarefas médicas e a falta de valorização salarial têm levado muitos médicos a abandonar o serviço público e dificultado a captação de novos médicos.

A carência de médicos especialistas é preocupante e também afeta áreas essenciais como os Cuidados de Saúde Primários, tanto nas especialidades de Medicina Geral e Familiar como de Saúde Pública.

Além disso, a escassez de médicos no serviço público não se restringe à tutela da Saúde. Estende-se à Defesa Nacional, nos hospitais e centros de saúde militar; à Justiça, nos institutos de Medicina Legal e nos estabelecimentos prisionais; entre outros. Infelizmente, todo o setor público sofre com a falta de médicos.

Qual a sua opinião sobre as políticas de gestão hospitalar implementadas nos últimos anos?

As políticas de gestão na Saúde implementadas nos últimos anos têm falhado, sobretudo na modernização e adaptação do sistema às necessidades reais, à sociedade moderna em que vivemos.

Um exemplo recente foi a reforma das “Unidades Locais de Saúde”, que tentou consagrar um aspeto importante – a integração de cuidados –, mas resumiu-se a uma integração da gestão de topo, não dos cuidados às pessoas. Falta maior autonomia e flexibilidade nas decisões, os gestores hospitalares e os médicos muitas vezes estão limitados por uma burocracia excessiva, comprometendo a eficácia da resposta do sistema.

A inclusão da sociedade civil teria sido outro fator muito relevante na área da promoção em saúde, na literacia, na prevenção, através de uma maior participação das escolas, das autarquias, das estruturas de apoio social, nomeadamente para idosos ou doentes crónicos. Isto teria sido um elemento verdadeiramente inovador.

Como avalia a resposta do Governo às crises nas urgências hospitalares?

O que devemos avaliar é a resposta dos sucessivos governos ao longo das duas últimas décadas. Está à vista de todos: a resposta tem sido desastrosa, a piorar de ano para ano. Não vale a pena usarmos eufemismos ou sequer fantasiar outra perspetiva, o país não tem sabido lidar com o problema das urgências.

Quais são as principais causas da sobrecarga nas urgências?

Resumiria em três vertentes: o acesso, a organização interna e a referenciação social. Os serviços de urgência têm de ser locais para atendimento de situações urgentes ou emergentes e não de casos de patologias menos graves que podem ser tratadas no domicílio ou nos cuidados de saúde primários. Para isso, é preciso muito mais prevenção e literacia e, por outro lado, aumentar a atratividade e contratação de mais médicos de família.

Há cerca de 1,5 milhões de utentes que continuam sem acesso a médico de família e que muitas vezes não têm outro recurso senão recorrer às urgências. O resultado são mais de 6 milhões de episódios de urgência por ano, dos quais cerca de metade são situações que não deveriam ter recorrido à Urgência hospitalar.

A falta de planeamento estratégico para lidar com picos de procura, como os períodos de gripe e férias, é outra das causas que contribui para o caos a que temos assistido nos últimos anos.

Outra área que requer um investimento prioritário do Governo são as pessoas dependentes que, embora tenham alta hospitalar, vivem sem apoio adequado no domicílio ou em lares, o que obriga, muitas vezes, a internamentos mais prolongados e desnecessários.

Que balanço faz do período de verão e do cenário nos hospitais?

O período de verão foi muito difícil, com o encerramento de diversas urgências e a consequente sobrecarga de outras. A falta de planeamento, associada ao período de férias e ao aumento de procura, sobretudo em áreas estivais, tornou a resposta do SNS, em várias regiões do país, claramente insuficiente. Acho que atingimos um limite perigoso, que obriga a uma intervenção firme e consequente do Ministério da Saúde.

O plano de inverno está já a ser pensado? Quando deverá ser apresentado?

A Ordem dos Médicos anda a alertar o ministério desde o início do ano para a necessidade de concretizar o plano de inverno com antecedência. Enviamos um documento orientador antes do verão, com medidas concretas para implementar a partir de setembro. O plano de inverno tem de ser delineado com antecedência, muitos meses antes da estação, para prevenir situações de rutura como às que temos assistido. Nos últimos anos, parece que houve uma normalização da contingência, do caos e da incapacidade do SNS em responder à pressão nas urgências hospitalares nestes períodos.

Ao que parece a Direção-Executiva do SNS já enviou para as ULS o plano de inverno, mas ainda não o conhecemos. O tempo para agir é agora, para evitar o caos nas urgências e dar uma resposta adequada aos doentes durante o período mais crítico do ano. O problema com o verão e o inverno é que o Ministério da Saúde parece ser sempre apanhado de surpresa com estes fenómenos cíclicos.

Na sua opinião, quais deverão ser as prioridades desse plano?

É preciso “planear, executar, avaliar e ajustar”. As prioridades devem ser o reforço dos cuidados primários para evitar a sobrecarga das urgências, reforçar os sistemas de vigilância das infeções, bem como o aumento da capacidade devacinação, sobretudo das populações mais vulneráveis, e da capacidade de internamento. Os hospitais devem ter planos de contingência adequados e garantir que têm médicos e outros profissionais em número suficiente para atender às necessidades dos picos de afluência.

Que soluções propõe para melhorar a retenção de médicos no SNS?

Em primeiro lugar, seria importante o Ministério da Saúde saber exatamente onde há carência de médicos, em que especialidades e em que dimensão, e não sabe… A criação de um índice de carência poderia ajudar a definir as prioridades e adaptar incentivos específicos para as situações de maior carência.

O SNS está a perder competitividade em relação aos setores privado e social, situação que tem de ser rapidamente invertida. É essencial melhorar as condições de trabalho e de acesso à formação e à investigação, desde a revisão da carreira médica até à garantia de uma flexibilidade horária mais equilibrada entre a vida pessoal, familiar, profissional e de atualização formativa.

Além disso, o SNS deve oferecer estabilidade contratual e uma remuneração justa que valorize o esforço e a elevada diferenciação dos médicos. As Unidades de Saúde Familiar e os Centros de Responsabilidade Integrada podem ser mecanismos que melhorem o acesso e a resposta dos cuidados, e que podem aumentar a atratividade do SNS para os médicos.

A falta de médicos de família é uma das principais queixas dos utentes. Como é possível resolver este problema?

Embora o número de vagas para a especialidade tenha aumentado consideravelmente nos últimos anos, se não forem tomadas medidas urgentes, nos próximos cinco anos podemos ter um número de pessoas sem médico de família ainda maior, considerando o elevado número de médicos de MGF prestes a entrar na idade da reforma. Este é um sintoma muito preocupante. A prioridade deve ser, por isso, o reforço da capacidade de atração do SNS que é, e deve permanecer, o alicerce dos cuidados de saúde.

Independentemente dos modelos de gestão das Unidades de Saúde Familiar, estes devem basear-se em premissas como o aumento do acesso dos utentes, a garantia de padrões de qualidade nos cuidados de saúde que possam ser monitorizados e avaliados, a contratação de médicos especialistas e a liderança médica. Conceitos que se devem sobrepor a outros interesses, especialmente de natureza económica.

É também fundamental criar incentivos para que os médicos se fixem nas regiões mais carenciadas e maior flexibilização das condições de trabalho, para permitir conciliar a vida pessoal e profissional e assim atrair mais médicos de família para o SNS. A desburocratização dos serviços, a atualização da carteira de serviços, os pagamentos dos incentivos e a criação de objetivos que façam sentido são aspetos essenciais.

Quais são as suas preocupações em relação à privatização de serviços no setor da Saúde?

Como já referi, o pilar fundamental de todo o sistema é o Serviço Nacional de Saúde e assim deve continuar, não tenho nenhuma dúvida acerca disso. Mas a minha preocupação é o acesso dos doentes a cuidados de saúde de qualidade. Esse é o principal objetivo. Quando um doente precisa de cuidados, não quer saber qual o modelo de gestão da instituição que os presta, quer simplesmente ser tratado.

Sou médico do SNS e nunca senti atração para trabalhar fora dele, mas não tenho nenhum preconceito ideológico em relação à Saúde. É preciso assegurar o princípio da universalidade do SNS e da igualdade no acesso aos cuidados de saúde. O SNS é uma das maiores conquistas do Portugal livre, do pós-25 de Abril. Devemos defender o SNS acima de tudo e dotá-lo dos meios, humanos e técnicos, para poder ultrapassar esta fase difícil. Contudo, acredito que o setor privado e o setor social podem contribuir para resolver e complementar muitas das atuais lacunas do setor público.

Na sua opinião, o SNS está em risco de colapsar?

Não gostaria de ser tão catastrofista, melhor dizendo, quero evitar o alarmismo excessivo, mas a verdade é que se nada de estruturante for feito, o SNS como hoje o conhecemos está em risco. É urgente implementar reformas estruturais, pois o SNS pode enfrentar uma crise sem precedentes. As falhas contínuas na resposta, a falta de um investimento adequadamente aplicado e o descontentamento dos profissionais, em particular dos médicos, são sinais de que estamos num ponto crítico.

Como vê o futuro das carreiras médicas em Portugal, especialmente para os jovens médicos?

O futuro da carreira médica é incerto. Muitos jovens médicos veem-se forçados a emigrar ou a optar pelo setor privado, devido à falta de condições no SNS. É fundamental criar condições que motivem os jovens a permanecer e a construir as suas carreiras no setor público. A Ordem dos Médicos está a elaborar um conjunto de propostas para entregar ao ministério para a criação da Nova Carreira Médica, que possa integrar os médicos fora do SNS e os médicos internos em formação. Uma Nova Carreira Médica adaptada à realidade diversa que temos hoje na Saúde.

Quais são os maiores desafios enfrentados, atualmente, pelos hospitais em Portugal?

Atualmente, o maior desafio para hospitais e centros de saúde é a carência de recursos humanos. A organização e coordenação entre serviços, juntamente com a sobrecarga dos serviços de urgência, são outros dos principais desafios enfrentados pelo SNS. A gestão ineficiente de recursos e a desmotivação dos profissionais contribuem para a deterioração do sistema. Infelizmente, a “reforma” das ULS não solucionou esses problemas e, em alguns casos, até os agravou.

Como avalia a distribuição de recursos entre os diferentes hospitais do país?

A alocação de recursos entre os hospitais é desigual, com unidades de saúde em áreas mais periféricas apresentando, frequentemente, menor capacidade de resposta e dificuldade em atrair médicos e recursos. É essencial combater essa situação através de um sistema de discriminação positiva e a implementação de incentivos, uma vez que tal cenário perpetua as desigualdades regionais no acesso à saúde.

Quais são os principais obstáculos à implementação de uma gestão mais eficaz e eficiente no SNS?

Os principais obstáculos são a burocracia excessiva, a falta de autonomia dos hospitais e a ausência de uma adequada coordenação de todo o sistema. Para uma gestão eficaz, é essencial investir em inovação tecnológica e reforçar a participação dos médicos no processo de decisão, além de conceder às instituições mais flexibilidade e capacidade de adaptação às necessidades locais.

Que medidas considera essenciais para garantir a sustentabilidade do SNS?

É necessário um novo rumo para o SNS. Além da valorização dos profissionais de saúde, em particular dos médicos, a modernização dos processos de gestão e a reorganização dos serviços são essenciais para garantir a sustentabilidade do SNS. O SNS tem de se tornar mais competitivo para atrair mais médicos e saber modernizar-se com a integração não só de sistemas de comunicação à distância, mas também das capacidades da Inteligência Artificial. Todo este mundo novo precisa de ser regulado do ponto de vista ético e deontológico, mas não pode ser ignorado.

Além disso, como referi, é necessário investir em prevenção e nos cuidados primários para aliviar a pressão sobre os hospitais. Do meu ponto de vista, o pano de fundo tem de manter os alicerces que presidiram à criação do SNS: universalidade, qualidade e humanização.

Quais são as suas propostas para melhorar a articulação entre os cuidados primários e os hospitais?

Essa articulação é importante, mas é insuficiente. Temos de juntar o setor da educação e literacia, do poder local, dos cuidados continuados e do setor social para podermos potenciar ao máximo a articulação entre todos e trabalharmos nos determinantes sociais em saúde, fundamentais para uma prevenção eficaz. Como disse anteriormente, a “reforma” das ULS não veio resolver os problemas existentes entre os cuidados hospitalares e primários. Não houve uma verdadeira integração de serviços, de cuidados e de equipas e, em certos casos, até veio agravar a situação previamente existente. A articulação entre os cuidados primários e hospitalares deve ser reforçada através da criação de equipas multi e interdisciplinares, de protocolos de atuação, de sistemas de comunicação e, sobretudo, de muita organização e diálogo equilibrado entre todas as partes.

Como avalia o impacto das greves e protestos no SNS sobre a perceção pública da saúde em Portugal?

As greves são decretadas pelos sindicatos médicos, não pela Ordem dos Médicos. Elas refletem o justo descontentamento dos médicos, mas também têm o nobre propósito de chamar à atenção para os problemas profundos do SNS. O seu objetivo centra-se na defesa de cuidados de saúde de qualidade, na defesa dos direitos dos doentes e das condições de trabalho dos médicos. Estou completamente solidário com a intervenção dos sindicatos médicos no seu propósito de defender o SNS e as condições de trabalho dos médicos.

Quais são as suas prioridades enquanto bastonário da Ordem dos Médicos para os próximos anos?

A Ordem dos Médicos tem centrado a sua intervenção em três eixos: modernização e profissionalização da Ordem dos Médicos, apoio aos médicos e defesa das suas condições de exercício da medicina e defesa intransigente da formação médica e da qualidade dos cuidados prestados aos doentes, ou melhor, às pessoas em geral.

Internamente, este primeiro ano de mandato serviu sobretudo para organizar a instituição e preparar um conjunto de novos serviços para os médicos. Cada projeto será apresentado no seu devido momento, no entanto, gostaria de destacar três áreas: Formação Médica, Solidariedade Médica e Ato Médico.

A Ordem dos Médicos é uma instituição altamente qualificada na vertente técnico-científica e formativa da Medicina e será fundamentalmente esse o papel a ser desenvolvido. Estamos determinados em apresentar propostas para melhorar os cuidados de saúde em Portugal e estou consciente do papel decisivo que a Ordem dos Médicos pode e deverá ter.

Que marca quer deixar na área da Saúde, em Portugal?

A principal satisfação é trabalhar em nome da Medicina e da Saúde. Queremos deixar um importante contributo para as bases de um novo rumo para a Saúde em Portugal, para a reconstrução e fortalecimento do SNS, um sistema mais robusto, sustentável e capaz de garantir o acesso universal a cuidados de saúde de qualidade a todas as pessoas que necessitem deles. Um sistema em que os médicos e os outros profissionais sejam respeitados e valorizados e em que os doentes sejam tratados adequadamente.

A mensagem mais importante é uma mensagem de perseverança e esperança num SNS ao serviço das pessoas, respeitando os seus profissionais, pilar de coesão social e referência incontornável de cuidados de saúde humanizados e de qualidade.

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